Os desafios de comentar um jogo de futebol

Comentar um jogo de futebol é uma coisa que todos fazemos de forma natural desde muito cedo. Qualquer um dos leitores desta revista, estou certo, cresceu a ver jogos de futebol e a simular comentários que, na sua forma de pensar, poderiam substituir aqueles que passavam na televisão, na rádio ou nos jornais. Eu fiz esse caminho. Desde o encanto pelos relatos radiofónicos, a curiosidade de conhecer aquilo que se fazia na televisão, por cá e lá fora (obrigado antenas parabólicas!) e a avidez com que o jornal era consumido, sobretudo à segunda-feira, com as indicações do que se tinha passado em cada campo. 

Passar da paixão para a profissão é um caminho que se poderá dizer aleatório. Não existe uma formação específica para se ser comentador, nem, olhando ao universo que temos nos meios de informação, um quadro de tendências muito acentuadas. Há gente com diversas formações académicas, diversos caminhos profissionais, diversos graus de contacto com o futebol. Essa é, para mim, uma riqueza desta profissão, a forma como recebe e integra diferentes visões para o exercício do comentário do jogo. Falo, em concreto, do comentário em direto da partida, e dos desafios que este lança a quem se arrisca a experimentá-lo.

Trata-se, para começar, de um trabalho de comunicação. Essa vertente é muitas vezes esquecida pela forma como quem se entrega a comentar jogos vive na ilusão de chegar, a partir daí, a um lugar numa equipa de futebol. Até poderá acontecer, mas é fundamental que a vertente comunicativa esteja na base do trabalho do comentário. O domínio da língua, a capacidade de se integrar no ritmo do meio utilizado (existem diferenças entre televisão e rádio) e a noção sobre o momento de intervenção é fundamental para passar a quem nos escuta as informações e as emoções que o jogo desperta. 

Como qualquer trabalho de comunicação, exige um profundo conhecimento da questão que se trata. Quanto mais se souber sobre futebol, melhor se conseguirá comunicar futebol. Falo de tudo. Da noção da história do jogo, das equipas e dos jogadores, da forma como os treinadores constroem a sua filosofia e estratégia, da maneira como o jogo evolui cientificamente e que desafios a prática coloca à teoria que se conhece. Sem esquecer, como é óbvio, das camadas culturais e sociais que estão em causa nesta modalidade. É um trabalho de estudo constante, porque falamos de uma área que está sempre em evolução. 

O saber de futebol, no geral, implica depois um trabalho de conhecimento particular. Ver os jogos é sempre uma forma de construirmos uma visão sobre a equipa, as equipas, que vamos comentar. Estudar os percursos dos jogadores e conhecer aquilo que é novo e aquilo que é hábito nos seus comportamentos em jogo. Entender a forma como cada conjunto tem crescido ao longo das semanas e os desafios que lhes são colocados pelas diversas competições em que estão inseridos. Tudo isto é fundamental para podermos construir o nosso comentário, escapando apenas ao “falar do que estamos a ver” que, por útil que possa ser, nem sempre acrescenta valor à transmissão.

A questão da continuidade é, também, fundamental, porque todos estes elementos precisam de ser oleados e trabalhados, não só na prática individual como na confluência com as duplas que se formam com os narradores. Os principais comentadores na Sport Tv ou na Eleven Sports fazem acima de cem jogos na temporada. A prática habitual de um comentador pode implicar fazer jogos de doze equipas diferentes num espaço de sete dias – é o meu caso concreto, na semana em que escrevo, entre rádio e televisão – o que implica um trabalho completamente diferente do treinador que prepara a sua equipa para um jogo semanal. A gestão do estudo e o controlo da fadiga associado à profissão é outro dos desafios que são constantemente colocados a quem aqui trabalha. 

É, sem dúvida alguma, um trabalho de paixão e um trabalho de dedicação. Uma experiência que se acumula e que, refletida e analisada, permite a evolução e a melhoria daquilo que se faz. Não é um trabalho em que tudo esteja controlado porque o jogo é dinâmico, os elementos que o jogam mudam e as exigências dos públicos também se transforma – e, no final, é feito em direto, para milhares ou milhões de telespetadores e ouvintes, o que implica a noção performativa do comentário. Fazer parte do espetáculo é também isto. Estar preparado para tudo o que pode acontecer. 

Publicado na Revista Scout, Novembro 2021.

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