[Recuperação de um arquivo desaparecido, com a publicação de artigos que, ao longo do tempo, foi escrevendo para o Expresso. Este foi escrito em maio de 2020.]
Depois da paragem imposta pela pandemia, o futebol está de volta. Parece um futebol diferente, para já, devido às regras sanitárias. Mas será que aquilo que nos espera, também no futebol, é o novo ou o velho normal?
Quando a 12 de março se jogou uma incompleta primeira mão dos oitavos-de-final da Liga Europa, a imagem das bancadas vazias e de equipas que não pareciam estar completamente focadas no que se passava em campo tornou necessário o que já parecia inevitável: o futebol tinha de parar. No dia anterior havia sido declarada a pandemia pela Organização Mundial de Saúde e o mundo entrava assim num túnel onde “coronavírus” e “covid-19” eram os únicos tópicos de preocupação, de análise, de notícia, de medo. Nesse fim-de-semana todos os principais campeonatos europeus viram as suas jornadas adiadas, sem previsão de realização, com todos os títulos por disputar.
A grande temporada do Liverpool em Inglaterra, a ferocidade do Atlético de Madrid na Liga dos Campeões, a crença europeia do Paris SG, a recuperação do Borussia Dortmund, a luta entre FC Porto e SL Benfica, tudo foi interrompido. Deixou-se de lutar pela sobrevivência, tal como o desejo de lutar por uma subida deixou de se poder realizar. Para muitos, o habitual calcorrear de estradas em busca de um jogo de futebol, o sol e a chuva que os atingia nas bancadas, deixou de ser possível. Cafés e restaurantes nem sequer esperaram por multidões à procura do melhor ecrã para os jogos de sábado à noite. Negócios por todo o mundo ficaram em suspenso. Até que, dois meses depois, a bola voltou a rolar nos relvados alemães. Estaremos preparados para um futebol completamente diferente? Falta saber se o próprio futebol quer enfrentar essa possibilidade de mudança.
O exemplo alemão
A 16 de maio o mundo estava de olhos no Signal Iduna Park, em Dortmund, onde o Borussia recebia o seu rival Schalke 04 para um dos dérbis mais quentes da Bundesliga. Mas quando, momentos antes da partida, Mats Hummels, internacional alemão e defesa-central da equipa da casa, entrou sozinho no relvado, um pouco como se se passeasse num parque, o mundo percebeu que era hora de procurar uma nova forma de olhar para o espetáculo de emoções que o campeonato alemão costumava ser.
Para que o futebol voltasse, os 36 clubes das duas principais divisões chegaram a um acordo sobre um largo número de regras que permitiram a luz verde dada pelo Governo e as autoridades sanitárias. O número de pessoas associadas às equipas e à organização de jogos foi reduzido ao essencial, plantéis e treinadores isolaram-se do resto do mundo, as portas dos estádios permaneceram fechadas e as bancadas vazias, com a televisão a ser a única forma de ver o jogo, à distância. As equipas deixaram de entrar lado a lado, já não há cumprimentos antes do jogo, tal como todos os protocolos foram reduzidos ao mínimo. Os bancos de suplentes, agora utilizando as bancadas para permitir o distanciamento entre pessoas, têm jogadores e técnicos com máscara nas faces, apenas se permitindo a exceção ao treinador principal para poder dar indicações para dentro do campo. Um campo onde os golos devem ser festejados sem aproximações.
Os exemplos dos primeiros jogos dão-nos a ideia de que o futebol vai sobreviver. Depois de uns minutos iniciais de alguma adaptação, os jogadores tenderam a aumentar o ritmo dentro das possibilidades que dois meses de paragem competitiva podem permitir. Houve golos, alguma emoção, sentindo-se que as equipas que vinham numa boa fase conseguiram repetir tal feito no regresso à prova, enquanto as que viviam com dificuldades ou fragilidades no seu processo de jogo não tiveram forma de o retificar. Foram poucos treinos de conjunto, marcados ainda pela adaptação às novas regras de convivência, algo que seguramente foi observado pelos treinadores das equipas que estão, agora, para regressar.
O exemplo alemão permitiu, assim, o que todos os outros países pareciam esperar: um teste ao desconhecido. Como em qualquer outra área da sociedade, o regresso à ação pós-pandemia é caracterizado por um elevado número de novas regras que não tiveram como ser testadas a não ser no momento da sua aplicação. O sucesso e a relativa tranquilidade assinalados no caso alemão permitem a confiança para o regresso do futebol, ao mesmo tempo que já terão levado, também, a algumas situações de acerto perante os testes em campo. Se tudo continuar a correr conforme o planeado, a Bundesliga até terminará no último fim-de-semana de junho, fechando a época dentro dos limites habituais.
Um calendário que, noutras paragens, sofre alterações. Em Portugal, a temporada entrará pelo mês de julho, um pouco como pelo resto da Europa, onde Espanha, Itália e Inglaterra também não têm outra alternativa do que estender os limites da calendarização de jogos. Uma situação que a própria UEFA assumiu desde cedo, mantendo ainda em aberto as datas finais para a conclusão das provas europeias. Mas a tendência que se vai assinalando é a permissão do término das provas nacionais para que, em agosto, se possa disputar Liga dos Campeões e Liga Europa. Neste ano atípico, um ainda mais atípico verão de futebol. Com o Euro 2020 adiado para o ano que vem, não deixará, por isso, de haver muito futebol para ver (e várias das ligas propõem, até, um calendário estendido pelas semanas) – vai haver futebol todos os dias.
Um vazio por ocupar
No regresso do futebol, uma importante parte da equação ficou de fora do estádio. O adepto que vive o seu clube como parte integrante do dia-a-dia e anseia o jogo como uma religião, acabou por ser uma das vítimas deste regresso do futebol. As bancadas estão vazias e as reuniões de adeptos estão também proibidas, quer nas imediações dos estádios, quer noutros espaços onde se continuam a aplicar rígidas regras de convívio social. O distanciamento é físico e arrisca-se a ser emocional, na forma como um estádio vazio acaba por influir na maneira como se vê e vive o jogo. O selecionador espanhol, Luis Enrique, compara o jogar o porta fechada ao “dançar com a própria irmã”.
Para quem está em campo, as diferenças são evidentes. A falta de público invoca diretamente os jogos de treino e um afastamento à competição. Os jogadores estão obrigados a um maior foco no jogo, a uma maior atenção no que se passa à sua volta, sem o habitualmente chamado “décimo-segundo jogador” ao seu lado. Ainda assim, aqui e ali, vêem-se jogadores a acenar às bancadas ou a festejar os golos virados para o espaço onde esperavam ver os seus fãs. Para quem fica de fora, a situação é mais aguda. Longe das bancadas, remetidos às suas casas, os adeptos perdem o contacto com uma realidade que é a sua. Quantos de nós vão até ao estádio pelo ambiente que ele nos empresta durante duas horas de um fim-de-semana, mais do que para perceber em que sistema jogam as equipas? O futebol sem público transforma-se apenas num jogo que é preciso entender para lá das emoções que este provoca. Mas é o próprio presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, que numa recente entrevista ao jornal Record disse estar pronto. “Vamos seguir as recomendações, mas tenho a certeza de que o bom e velho futebol com adeptos vai voltar muito, muito brevemente. Não acho que nada vá mudar para sempre”.
A ausência de público nos estádios tem também uma enorme implicação na forma como o trabalho de muitos ligados à organização dos jogos foi afetado. Muitos espaços comerciais nas zonas circundantes dos estádios, dos fixos aos móveis (como as barraquinhas de bifanas), estão agora fechados, bem como fechadas ficaram as lojas dos clubes e todas as atividades que, já nos próprios estádios, animam os dias de jogos. Sem público não há, também, emprego para milhares de pessoas, do vendedor ao segurança, que não sentirão este regresso do futebol como seu.
Por outro lado, o betão e o plástico das cadeiras vazias não são o melhor cenário para uma transmissão televisiva. Estava já estudado o fenómeno de uma bancada parcamente preenchida no interesse criado ao telespetador, tanto que, em Espanha, os clubes de LaLiga viram aprovada uma norma que impunha um preenchimento de 75% da bancada central mais visível nas transmissões. Agora, sem público, o desafio que é colocado à realização dos jogos, a sua transformação em espetáculo televisivo, puxa pela criatividade e pelas soluções que clubes e canais de televisão podem sugerir.
Na Alemanha, o processo de evolução da transmissão sente-se de semana a semana. Depois de um primeiro dia de transmissões seguindo o livro de regras preexistentes, nota-se como a procura de ângulos para preencher a emissão se foca, agora, em pormenores da construção do estádio, da rua visível para lá das bancadas, dos gestos das poucas pessoas que estão perto do relvado. O que antes era um cenário cheio de movimentações ensaiadas por grandes grupos de adeptos, onde a paixão pelo clube e a beleza do humano se revelavam a cada instante, agora se transforma numa delicada busca por um angulo que nos distraia do vazio das enormes construções. Por outro lado, o próprio ângulo oferecido do relvado tende a procurar, o mais possível, reter-se agora à linha lateral e às publicidades circundantes, para que não fique mais evidente a ausência do adepto.
Um adepto que não tem data de regresso às bancadas e que, também por isso, se terá que adaptar à nova realidade de ver o jogo a partir de casa. Um adepto que não pode, agora, sequer contribuir para a banda sonora do jogo em direto, modificada que foi para as palavras de treinadores e jogadores, conversas entre eles, os pontapés na bola, o rasgo do contacto entre os corpos. É toda uma novidade para a geração do futebol na televisão, mas também é uma espécie de regresso aos campos onde nos apaixonámos pelo jogo. A intensidade continua lá, ainda que de forma diferenciada. Questiona-se, no entanto, como corresponderão as audiências a médio prazo.
Os primeiros jogos serviram para buscar um alimento que nos havia sido retirado da mesa. Os jogos seguintes dão-nos a provar, de forma mais racional, aquilo que antes era emoção. Viver um clube será sempre viver um clube. Mas é, provavelmente, na forma de chegada pela televisão que o jogo mais se transforma neste pós-pandemia. E enquanto se discute se uma parte dos jogos podem ser transmitidos em canal aberto, facilitando a visualização a todos os que ficam por casa, esse exercício acaba por colocar em causa a principal razão do regresso do futebol ter sido visto como tão urgente – havia uma indústria que poderia morrer caso não recebesse os valores contratados com os operadores.
Necessidade e negócio
A necessidade de uma revisão do negócio do futebol terá sido a primeira coisa a surgir na cabeça de gestores de clubes por todo o mundo, procurando, desde logo, formas de reduzir despesa perante a anunciada quebra de lucros. Os salários dos jogadores foram revistos, alguns clubes recorreram ao layoff ou a soluções equiparadas nos respetivos países, o pagamento de dívidas ou acordos foram atrasados com vista a suster a crise de tesouraria. Mas é toda a pirâmide do futebol que é afetada quando, no topo, os clubes mais ricos sentem dificuldades para manter a sua forma de trabalhar. Nas divisões secundárias, vários jogadores deslocados dos seus países ficaram em situação de enorme fragilidade social, muitos deles apoiados pelos adeptos e pelas populações das localidades onde ficaram retidos. A situação de pobreza ameaça parte dos elementos associados ao jogo e relança velhas questões sobre a distribuição do dinheiro na indústria futebolística.
A sobrevivência dos clubes está, no entanto, em primeiro plano. É essa a principal razão da urgência do regresso. No mês de abril, em Portugal, os operadores que detém os direitos de transmissão não disponibilizaram dinheiro aos clubes, tendo em conta a ausência de jogos. Cá como noutros países, a situação dos clubes transformou-se, porque apesar de ser uma indústria geradora de muito dinheiro, este desloca-se numa lógica de distribuição permanente e não de acumulação. Por isso as situações de tesouraria apertaram e dificultaram a respiração dos clubes. Na Holanda e, sobretudo, em França, países onde o término da temporada foi impedido por decisões governamentais, a situação financeira das equipas acabará afetada, com o Canal Plus francês a reter as verbas relativas às dez jornadas que ficaram por disputar e a Liga francesa a procurar forma de ter garantias para um empréstimo que permita a manutenção da atividade dos seus clubes.
Voltar à jogar faz-se, assim, por via da necessidade. Uma necessidade que continuará a impor-se perante o quotidiano dos clubes. Não havendo ainda decisões quanto à calendarização do próximo mercado de transferências, ficou já claro que os valores praticados na compra e venda de jogadores serão bastante afetados, com a visão mais otimista a apontar para uma quebra de 15%, mas com o presidente do Sporting, Frederico Varandas, em recente entrevista ao Canal 11, a assumir que estas poderiam atingir valores mais próximos dos 50%. Ceferin mantém-se expectante quanto à reação do mercado. Essa será, no momento, a grande questão que se coloca aos decisores nas respetivas equipas.
Quem procurava reforçar o seu plantel procurará agora fazê-lo de forma controlada, havendo uma natural aposta em mercados mais baratos e na possibilidade de completar plantéis com jogadores que têm já contrato, sejam elementos que estavam emprestados ou que subam dos escalões de formação. Quem procurava vender jogadores e dispunha de talento para atrair as divisas das principais ligas, ver-se-á agora entre a espada e a parede: aceitar um valor mais baixo para corresponder às necessidades imediatas de dinheiro ou esperar que o mercado se volte a equilibrar, dentro de uns meses, para regressar a valores mais próximos dos anteriormente praticados? Uma vez mais, navega-se no desconhecido.
O pensamento sobre o futebol tem-se desenvolvido, também, a diferentes velocidades. Da parte da FIFA, alterações nas regras, como a decisão para alargar o número de substituições para cinco durante os noventa minutos, demonstram uma preocupação clara de conseguir intervir no momento certo para facilitar o regresso. Medidas mais complexas e aliadas ao negócio, como a discussão sobre o fair-play financeiro da UEFA, parecem ser tratadas com pinças, podendo haver uma exceção para a próxima temporada. Na entrevista já referida, Aleksander Ceferin disse que tem em consideração algumas alterações, como um “tipo de imposto de luxo. Há muitas ideias, mas durante este período difícil parámos de pensar sobre as mudanças que podem vir no futuro.” Ou seja, a reinvenção do futebol, para certos olhares, também só seguirá dentro de momentos.
E, agora, um futebol completamente diferente?
Muitos viram na pausa imposta pela pandemia uma oportunidade para rever os seus comportamentos e opções de vida. Tantos sugeriram que a paragem lhes permitiu entender de outra forma o seu posicionamento perante as coisas. Mas muitos mais ultrapassaram esta fase com enormes dificuldades para ver para lá do momento de crise em que caíram. E a resposta à crise fomenta um desejo de um regresso imediato ao estado de coisas que se tinha antes. É inevitável que numa indústria competitiva como a do futebol a resposta do quão diferente as coisas virão a ser acaba por chocar com a realidade dos desejos primários que ainda parecem condicionar tantas reações.
Se foram das pessoas que sossegaram com a ausência de debates acalorados nas noites de televisão, tantas vezes dados a demagógicas agendas circunstanciais na luta pelo poder, esse sossego já terminou. O mesmo se passou com a violência escondida no apoio a clubes, como se está também a passar na necessidade de uma visão mais clara para o futuro do futebol português. Fernando Gomes, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, ocupou um espaço de referência na liderança nos vários processos abertos pelo regresso do futebol, quer na negociação com as operadoras, nos contactos com o Governo e a DGS, na reunião dos presidentes dos três grandes e, ainda, na forma como a FPF conseguiu ler o contexto para impor também uma mudança nos quadros competitivos do Campeonato de Portugal. Durante a pandemia, fez publicar um artigo em vários jornais nacionais onde defende uma cultura de exigência e de união dos clubes de futebol para abordar o futuro, no que poderá ter sido o gesto público mais claro de uma transformação da realidade do nosso futebol.
Mas na forma como vários presidentes encararam as negociações para a realização dos jogos em falta, procurando lançar de forma pública debates que pouco ou nada tinham que ver com a forma como estes acabaram resolvidos com as autoridades competentes, na maneira como se continua a olhar para a rivalidade e para os interesses individuais como algo mais importante e fundamental do que uma visão de todo para o futebol português, reside, na verdade, a principal doença que continua a atacar a indústria do jogo. O momento que atravessamos terá feito alguma luz sobre quem terá a capacidade de ter a atitude mais responsável, mas o caminho não está propriamente aberto para uma mudança significativa. Quem quiser lutar por um novo futebol vai ter que continuar a trabalhar para vencer o braço-de-ferro.
Por isso, na expetativa de que tudo regresse rapidamente ao mesmo, olha-se para um quadro de alguma fragilidade económica de boa parte dos clubes, de ausência de trabalho para um largo número de pessoas que viviam associadas à indústria do futebol, nas quebras salariais e de contratos para jogadores, no que é ainda um território de dúvidas sobre que futebol teremos, mas, seguramente, com as principais vítimas da crise pandémica bem identificadas. E longe das bancadas, os adeptos buscarão novas formas de intervir na vida dos respetivos clubes, procurando que este “novo normal” não se normalize sem a sua presença. O jogo, em si, continuará o mesmo. Mas o futebol sempre foi, e sempre será, muito mais do que isso.