A playlist de Fernando Santos [Artigos do Expresso]

[Recuperação de um arquivo desaparecido, com a publicação de artigos que, ao longo do tempo, foi escrevendo para o Expresso. Este foi escrito em junho de 2021.]

São oito canções de autores portugueses que ajudam a explicar como joga a seleção portuguesa, quais as suas forças e fraquezas, bem como um pouco da sua história recente. Canções que ainda nos apontam caminhos a ser seguidos no futuro, para que o jogar para ganhar de Fernando Santos junte, ao lugar na história, um lugar nas nossas boas memórias.

Uma playlist diz muito daquilo que somos e também do que gostaríamos de ser. A seleção portuguesa, campeã europeia em 2016, defende o título numa competição que se disputa em onze cidades do continente. Adeus às referências de um país organizador, este Euro é para andar a viajar de avião pelas várias cidades-sede onde vinte e quatro equipas farão o que podem para, no dia 11 de julho, estar em Londres para levantar o troféu.

A forma como Portugal joga e a forma como Portugal poderia jogar é uma questão que se repete desde muito antes de Fernando Santos ter assumido o lugar de selecionador nacional. Com o Engenheiro ao leme, não sobra muito tempo para poesias. Portugal joga para ganhar e, diga-se a verdade, nunca nenhum selecionador ganhou tantas vezes quanto Fernando Santos, que fez história ao conquistar o Euro em 2016 e a Liga das Nações em 2019, as únicas duas provas internacionais de seleções principais conquistadas pelos portugueses.

Certezas e incertezas

Então, qual é o problema? O problema é que muitos olham para a equipa nacional e ouvem a Ana Moura a cantar “Desfado”, na incerteza que nada mais certo existe, além da grande certeza de não estar certa de nada. Com Fernando Santos, Portugal arruma-se num sistema de base com quatro homens na defesa, três no centro do campo e três dianteiros, mas o jogo tende a levar o sabor e o ritmo dos jogadores que estão no onze, não de uma identidade coletiva que esteja definida à partida.

No campo das certezas, o equilíbrio que a equipa tem que apresentar, habitualmente assente na junção de um médio de características mais defensivas aos dois centrais. O adversário tem um leve peso no passo seguinte, mas nos outros dois lugares reservados para médios, é mais habitual encontrarmos alguém com um perfil de pouco risco ofensivo na ligação ao ataque, para a partir daí abrir espaço para a criatividade individual. Portugal beneficia da subida dos seus laterais, mas o ritmo de jogo faz-se a partir dos extremos que pensam, muitas vezes, em como chegar ao corredor central, onde também vai surgir um Cristiano Ronaldo que é presença constante no momento ofensivo da equipa.

No campo das incertezas, vive-se a aleatoriedade do futebol em doses que os nossos corações já não estão tão habituados a viver nas competições de clubes. Um dia, a equipa conjuga um segundo avançado que rasga espaços em busca de profundidade, outro dia, cola um médio-ofensivo que espera a forma como a bola lhe é entregue para marcar diferenças. Umas vezes, há alguma liberdade para procurar espaços para reorganizar a partir de terrenos mais recuados, outras vezes, a equipa espera com bola até ser possível encontrar um pequeno espaço no desequilíbrio defensivo do adversário. Portugal consegue fazer várias coisas diferentes, mas nem sempre demonstra ter o comando para escolher o que fazer em cada situação.

Em termos defensivos, Portugal também navega águas de adaptação ao contexto de cada jogo. Apesar de em várias partidas se posicionar no meio-campo do adversário, a seleção de todos nós não demonstra grande disponibilidade para ocupar bem todos os espaços, preferindo-se, mais segura, a organizar o seu bloco no próprio meio-campo. É aí que Portugal se defende melhor, baixando linhas, aumentando a agressividade posicional na forma como procura impedir a chegada na sua área e a verdadeira liderança assente numa dupla de centrais que se comporta como um xerife no velho oeste. Mandando como quer e lhe apetece.

Portugal escuta-se ao som de Sérgio Godinho, “Com um brilhozinho nos olhos”. Ao longo dos anos, Fernando Santos tem encontrado mais jogadores, com diferentes características, para assentar o seu jogo e confortar-se com um lote de uma qualidade máxima que continua a ser desafiada pelas novas gerações. No grupo de 26 elementos escolhidos para o Euro, seis jogam na Liga Portuguesa, os restantes vinte atuam nas cinco ligas mais poderosas do mundo. É um grupo de elite onde, naturalmente, podendo saber a pouco, é natural que se queira meter o carro muito à frente, muito à frente, dos bois.

Se Pepe foi um dos grandes defesas-centrais do futebol europeu, ter Rúben Dias, o melhor jogador da Premier League, assegura o pronto-socorro defensivo da equipa. O desenvolvimento de Raphael Guerreiro e João Cancelo permite-lhe ter dois laterais modernos, com enorme capacidade de explorar as linhas, mas também, encontrar jogo interior. Viu florescer nas principais equipas do mundo estrelas criativas e lutadoras como Bernardo Silva, Diogo Jota ou Bruno Fernandes. Confia na enorme capacidade e experiência de jogadores como Danilo Pereira ou João Moutinho e ainda pode sonhar com o desabrochar de talentos como João Félix, André Silva ou Renato Sanches. E, sim, continua a viver com a possibilidade de se alimentar do gene competitivo de Cristiano Ronaldo, um homem que não vê limites em nenhum momento competitivo.

A pica do sete

Começa a cantar António Zambujo, porque mais nada me dá a pica que o pica do sete me dá. Se muitos se ocupam a discutir se Portugal joga melhor ou pior quando Cristiano Ronaldo está em campo, poucos terão dúvidas em responder se Portugal teria chegado tão longe nos últimos anos se não existisse um camisola sete com a capacidade de arrancar da equipa uma crença inabalável na possibilidade de vencer frente a qualquer adversário. É certo, com Ronaldo em campo, a equipa soa demasiadas vezes dependente desse mesmo génio. Deambula pelo terreno de jogo, exige demasiada bola, quer rematar mais do que toda a gente, quer finalizar até ultrapassar o recorde de maior goleador de sempre com a camisola de uma seleção. Mas tudo isso acaba coroado com a capacidade de elevar Portugal para patamares mais altos.

Sem Cristiano Ronaldo em campo, a equipa sente outro tipo de necessidades para as quais, dada a muita qualidade do grupo de jogadores disponíveis, tem resposta. O jogo ofensivo torna-se mais associativo, existe uma maior cooperação nos momentos com bola e acentua-se a capacidade criativa latente do jogador português. Ao mesmo tempo, a equipa também beneficia de mais um elemento com rendimento defensivo, algo que, aos trinta e seis anos, Cristiano Ronaldo já não acrescentará. Mas ninguém tem um dos melhores jogadores da história do futebol e se poderá queixar da opção. Pode, Fernando Santos, imaginar uma organização ofensiva diferente, sustentada em parte das qualidades de Cristiano Ronaldo (lá chegaremos), mas não pode recusar a ideia de o utilizar – e no final das contas, o camisola sete tem acrescentado, mais do que retirado, ao potencial da equipa.

Olhar para as últimas duas prestações nacionais em fases finais de competições internacionais permite perceber, não só a evolução, mas toda a construção que Fernando Santos tem vindo a fazer com a equipa nacional. No Europeu do nosso contentamento, em 2016, os problemas de criatividade ofensiva eram notórios e o grupo não encontrou resposta para os resolver durante a fase de grupos. A utilização de Nani no corredor central procurava permitir o maior espaço possível para libertar Cristiano Ronaldo, o que acabou por não chegar para fazer a diferença. As entradas de Renato Sanches, João Mário e Quaresma, este a partir do banco, acabaram por dar outra leitura ofensiva à equipa.

A chave da prestação nacional esteve, sobretudo, no momento defensivo, com um bloco cada vez mais estrito em termos posicionais, recuado, alimentando-se da transição para driblar a forma como os adversários se procuravam proteger. E foi por aí que se lançou a ideia de um campeão europeu que não deixava de se rever nas palavras de Miguel Araújo, quando canta que os maridos das outras são o arquétipo da perfeição. Portugal ganhou a jogar “feio” e isso pareceu imperdoável para quem estava mais habituado a perder “bonito”.

O Mundial de 2018, no entanto, recuperou a discussão na forma como a equipa nacional, então já com um estatuto vencedor, teve que enfrentar no Mundial um conjunto de equipas onde o coletivo fala mais alto do que as estrelas. Depois de uma entrada em ritmo descontrolado com a Espanha, Marrocos, Irão e Uruguai demonstraram como a necessidade de criatividade e organização ofensiva fala mais alto do que a mera vontade de vencer. Essa prova terá marcado o tom para os anos que se seguiram, com Portugal a evoluir nas capacidades de um conjunto de jogadores que vai aumentando a capacidade competitiva da equipa, mas insegura no plano estratégico. Aos campeões, já todos percebemos, não basta ganhar – pelo menos até que numa nova fase final a questão se volte a colocar em termos de mata-mata.

Como jogar e com quem

Como responde a convocatória a esta questão? Entre tantas coisas por fazer e tantas por inventar, Fernando Santos dá um mergulho no mar, como os Xutos & Pontapés. O aumentar do número de jogadores convocáveis mexeu com os hábitos do Engenheiro. O próprio revelou no momento do anúncio dos nomes que tinha constituído uma primeira lista com os habituais vinte e três, buscando depois, com a sua equipa técnica, mais três nomes para completar os disponíveis. Como método, não diria ser o mais indicado, mas olhemos para a forma como o grupo se desdobra para perceber, a partir daqui, as pistas para a forma como a equipa jogará no Euro 2020. Começando pela baliza, Rui Patrício não deixa espaços para dúvidas, tal como Anthony Lopes e Rui Silva comprovam que há opções com bom rendimento nos clubes em caso de algo acontecer.

No número de defesas escolhidos, fica desde logo claro que Fernando Santos não cederá à tentação de seguir tendências, apresentando três centrais (ele próprio o confessou). Escolhendo apenas três jogadores que atuam nessa posição, sendo que todos eles atuam em equipas que têm esquema habitual de apenas dois centrais, o Engenheiro terá que recorrer a Danilo Pereira para jogar mais recuado, como aconteceu no particular contra a Espanha, se houver necessidade de peça extra. As duplas de laterais, quer à direita, quer à esquerda, apresentam um jogador com maior capacidade de envolvimento no corredor central (Cancelo e Guerreiro) e duas opções que exploram melhor um jogo explosivo e de velocidade (Nélson Semedo e Nuno Mendes).

Avançamos no terreno e ao médio de posicionamento mais fixo, Danilo Pereira corresponde na perfeição, com Rúben Neves e João Palhinha a poderem também cumprir com essa mesma função. A chamada de William Carvalho causou surpresa pelo facto de ter sido muito pouco utilizado nos últimos seis meses no Bétis de Sevilha, mas as suas qualidades permitem ter um elemento que atue mais recuado com forte capacidade de ter bola, ao mesmo tempo que pode servir como opção uns metros à frente. Aí, a veterania de João Moutinho, a capacidade de trabalho de Sérgio Oliveira e a explosividade de Renato Santos são peças que terão espaço para definir dupla no meio-campo.

Bernardo Silva e Bruno Fernandes são os dois cérebros disponíveis na equipa, quando o jogo começa a pisar terrenos mais adiantados. Se o homem do Manchester City é utilizado, na seleção, quase sempre a partir da direita, o homem do Manchester United tem completado mais papéis no corredor central, ainda que nem sempre encontrando todas as dinâmicas que acabam por o diferenciar na Premier League. Pedro Gonçalves ganhou espaço depois de uma fantástica temporada no Sporting, podendo funcionar como alternativa, em terrenos onde Renato Sanches também terá palavra a dizer.

Para avançados, Diogo Jota será o jogador em melhor condição para dar resposta a partir da esquerda, até pelo bom entendimento que tem revelado com Cristiano Ronaldo. A João Félix não se discute o talento, mas o terreno onde pode acrescentar à equipa, que terá na capacidade goleadora de André Silva e na disponibilidade e velocidade de Gonçalo Guedes mais alternativas para construir perto da área. A convocatória de Fernando Santos arrisca na forma como procura dar resposta a muitas questões que se poderão vir a colocar, sem ser capaz de se definir num plano de entrada que seja claro. O onze pode estar perto de definido, mas a forma de jogar continua à espera de melhor definição. Seja como for, é para ganhar.

O futuro

Tal como António Variações deixou gravado na memória coletiva da música portuguesa, o é para amanhã, bem podias fazer hoje, porque amanhã sei que voltas a adiar, será o som que melhor conjuga a forma como a seleção poderia jogar. A indefinição em termos de identidade tem pesado de maneira negativa no legado que Fernando Santos pretende deixar, sobretudo num momento onde o futebol tende a ser, cada vez mais, um debate de treinadores em detrimento da qualidade individual dos jogadores. O Engenheiro já tem um lugar na história, pelos títulos conquistados, mas os anos que levará na frente da seleção serão a sua oportunidade para consolidar princípios que melhor retirem do conjunto de jogadores que tem à sua disposição uma imagem do que jogar à Portugal deve ser.

O primeiro ponto é Cristiano Ronaldo, sabendo que enquanto o capitão da seleção estiver disponível para jogar, irá jogar. É fundamental que Portugal retire mais e melhor das capacidades de finalização do camisola sete, que nos dias hoje estão focadas na proximidade da área, na facilidade de remate, na qualidade no jogo aéreo. Um melhor Cristiano Ronaldo é um Cristiano Ronaldo mais dedicado ao corredor central, tocando menos na bola, mas sendo muito mais decisivo na forma como a equipa define o ataque final à baliza.

A este ponto conjuga-se a criatividade. Portugal tem talento de sobra e vai continuar a ter, como se percebe na geração de Sub-21 que atingiu mais uma final. Bernardo Silva e Bruno Fernandes terão que ser os homens a definir ritmos e espaços de ataque, libertos na forma como comandam a equipa. A qualidade de Diogo Jota e a abrangência de jogo de João Félix terão, também, que se sobrepor à necessidade de território de Cristiano Ronaldo. No fundo, a mudança ofensiva de Portugal deverá passar pela mudança geracional na forma de encarar o jogo. Detendo a área de intervenção de Cristiano Ronaldo e aumentando a área de influência de jogadores mais criativos em posse.

Essa alteração também permitirá um aumento da agressividade defensiva, do atual posicionamento recuado para uma preponderância mais intensa no meio-campo ofensivo. Portugal deverá defender de forma coletiva em terrenos mais adiantados, obrigando o adversário a mais perdas de bola e criando, a partir daí, mais situações de perigo em desequilíbrio, outra situação onde um Cristiano Ronaldo de área pode e deve servir para cumprir de forma muito eficaz. Trata-se, no fundo, na mudança de perfil dos médios na equipa portuguesa, olhando para aquilo que é tendência nas principais equipas portuguesas, onde as duplas se constituem com liberdade e responsabilidade para maiores zonas de atuação, como foi o caso, esta temporada, de João Palhinha e João Mário nos campeões nacionais.

A estes ajustes, será bom também considerar que o gene futebolístico português sempre se alimentou de uma ideia de alegria na forma de atacar os objetivos. Tal como canta Capicua, em Vayorken, a gente diverte-se imenso, algo que não deverá nunca ser esquecido por quem comanda uma equipa que representa todo um país. Essa ideia de divertimento, sem abdicar do equilíbrio que dá vitórias, passará por encontrar no lote de jogadores nacionais mais elementos que possam alimentar o aproximar às tendências do futebol atual.

Portugal terá possibilidades de, num futuro breve, passar a jogar com uma linha de três centrais, com Rúben Dias a comandar a defesa com jogadores como Gonçalo Inácio, Diogo Leite ou David Carmo. Essa linha oferecerá ainda maior liberdade de atuação para os excelentes laterais que a equipa dispõe, ao mesmo tempo que permitirá um meio-campo onde a segurança defensiva não abdica de capacidade para sair a jogar e oferecer muito melhor ligação com os homens mais adiantados. E como Cristiano Ronaldo não durará para sempre, ainda que esperemos que dure bons anos, é também certo que o futuro da equipa nacional passará por encontrar um lote de jogadores que aumente a rotação de jogo e constitua uma séria e continuada ameaça às equipas que tenham que enfrentar Portugal.

O problema de uma seleção como a portuguesa não está na falta de talento, na falta de jogadores, na ausência de opções para jogar como escolher jogar. Portugal tem, nos nossos dias, um quadro de jovens jogadores que não deixam nenhuma posição com menor capacidade de resposta, algo que é fruto direto do excelente trabalho que se continua a fazer em Portugal no futebol formação, com muitos clubes a terem instalações e equipas técnicas de excelência e uma Federação que tem sabido liderar projetos de transformar esse talento em qualidade coletiva para atacar as competições dos diferentes escalões.

O problema de uma seleção, e que afeta todas as equipas nacionais, é a falta de tempo para treinar a identidade que se deseja ter. Tal como para Rui Veloso, qualquer selecionador sentirá que o mundo inteiro se uniu para o tramar. Não é no pouco tempo que a seleção nacional para treinar, num calendário com crescentes exigências para os jogadores a nível de clubes, que uma equipa pode evoluir e transformar-se. Esse trabalho passa muito por encontrar formas de trazer esse corpo de identidade dos momentos formativos, apostando numa cada vez maior conexão e entendimento entre aquilo que se constrói na formação e o que se pretende colher na equipa principal. O trabalho de seleção é, acima de tudo, um projeto de longo curso que, neste verão de 2021, se encontra com um momento competitivo onde Portugal chega com muito talento, com muito crédito internacional e com muita vontade de alcançar novos sucessos.

Fernando Santos preparou a sua playlist e viajou para a Hungria, onde se estreará, com a seleção local, na prova. Há que dar música a todos nós, de maneira a cumprir a promessa que tem vindo a ser feita ao longo do tempo na Federação. Jogar para ganhar. Uma vez mais.

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