Taremi, Rafa e os adeptos que vestem camisolas nas bancadas. Três temas quentes de uma semana onde a simulação continua em alta no futebol português. Não naquilo que foi, pela repetição, transformado em óbvio, mas naqueles que se continuam a esconder em discursos que não defendem o futebol.

Taremi e a campanha anti-Taremi
Mehdi Taremi é um jogador que convoca paixões. Pelas suas características, é o avançado chato, imprevisível, que surge quase sempre em movimento, aparecendo na área como um incómodo para o defesa que tem dificuldade para lidar com a velocidade do seu adversário. Taremi procura muitas vezes o contacto com os seus rivais, para ganhar espaço, para encontrar situação de remate. Se a isso juntarmos o facto de, na Liga Portuguesa, jogar numa equipa de grande volume ofensivo, chegamos à conclusão que é um jogador que conquista muitos penáltis, como noutras Ligas, por exemplo, Raheem Sterling, Kylian Mbappé ou Ciro Immobile.
Em Portugal, no entanto, transformam-se características em falhas. Da forma como ganha penáltis, Taremi viu-se tornado num jogador que roça a ilegalidade pelas suas ações. Tudo se agrava pela forma como, por cá, cada coisa é tornada num acontecimento colorido conforme às cores clubísticas de cada um. Com campanhas semanais em, pelo menos, um canal de televisão, Taremi perdeu espaço para se definir enquanto o jogador diferenciador que é. Vale a Mehdi Taremi a forma como não abdicou de ter palavra. Quando confrontado com o tema no final do jogo entre Estoril e FC Porto, numa questão que dava ao jogador a oportunidade para clarificar a sua situação, o iraniano fê-lo. Respondeu na forma como joga, enfrentando o “adversário” e procurando a sua oportunidade de rematar a questão. Como o grande jogador que é.
Infelizmente a Taremi foi retirado o impacto da sua voz pela reação que se seguiu. Reações que não aceitam a troca de ideias, que influenciam a maneira como os respetivos adeptos entendem o mundo onde vivem, manipulando os acontecimento de maneira a alimentar as respetivas narrativas. E isso, sim, é uma simulação. Porque em lugar de olharmos para Mehdi Taremi como o bom jogador que é, em lugar de o podermos ouvir como alguém que claramente pensa sobre aquilo que faz e tem armas para se defender, transformamos a realidade numa campanha e a resposta numa fuga. Essas são as simulações que me custam aceitar, no futebol e na vida.
Rafa pode ser quem é?
Rafa Silva sempre foi um jogador diferente. Capaz de momentos impressionantes nos relvados, conjuga-os com períodos onde o seu brilho parece esvair-se na espuma dos dias. A sua compleição física sugere sempre alguma fragilidade perante aquilo que o seu génio é capaz de revelar, quando finalmente se solta da lâmpada onde vive fechado. Talvez por isso tenha feito toda a sua formação no Alverca, até sair para o Feirense com idade júnior. Um jogador que passou todo esse período na sombra, até fazer uma estreia sénior na equipa da Feira, ainda na Segunda Liga, seguido da afirmação imediata já com a camisola do Braga. Em 2016, depois de ter sido Campeão Europeu, Rafa acabou por quebrar o recorde de maior transferência entre equipas portuguesas, com o Benfica a pagar 16 milhões por 90% do seu passe.
No Benfica, Rafa continuou a ser Rafa. Com menos golos nas primeiras duas épocas, explodindo na parte final da era Rui Vitória e revelando-se com Bruno Lage e, depois de nova quebra, fazendo uma grande época em 21/22 e sendo agora peça essencial para Roger Schmidt. Não deixa de ser curioso que as melhores épocas de Rafa no Benfica tenham sido, até aqui, temporadas de alguma crise interna, mas também épocas em que os treinadores procuraram variantes táticas que o beneficiam. Com o técnico alemão, Rafa parece mais confortável do que nunca. Não é um jogador amado pelos seus adeptos, não é um jogador expressivo quando não está na condução da bola, nem dentro, nem fora dos relvados, mas é indubitavelmente um jogador que tem sido capaz de se manter num nível alto há já muitas temporadas.
Ao serviço da Seleção, Rafa teve sempre mais dificuldades para se afirmar. Pela falta de tempo para treinar que sempre surge no discurso de Fernando Santos, pelas limitações que jogadores na posição de Rafa sofrem no esquema do atual selecionador. Selecionador que sempre o defendeu publicamente, mesmo em momentos em que rumores se transformaram em notícias por confirmar. Rafa sofre, sobretudo, por não ser um jogador que encaixe no ideal que continua a ser tido como essencial. Não é um jogador confiante, eloquente, não é um jogador que se impõe, não participa de um ambiente de simulação de machos dominantes que muitos entendem como necessário para se ter sucesso no jogo. E, apesar de tudo isso, Rafa continua a ter sucesso. Que, esta semana, Rafa tenha decidido que a Seleção não é o espaço onde se sinta confortável, é uma decisão que apenas a Rafa diz respeito. Acho que, desta vez, deveríamos convir que Rafa, como todas as pessoas, pode e deve ser quem ele quiser ser.
Não é a camisola, é a ação de quem a veste
Em Portugal também parece ser um problema que as pessoas queiram ir ao futebol com as camisolas das suas equipas vestidas. Repito. Parece ser um problema que as pessoas queiram ir ao futebol, ver as suas equipas preferidas, com uma camisola dessa mesma equipa vestida. Não consigo situar no tempo o momento em que o futebol ser disputado por duas equipas começou a ser um problema. Sempre me lembro de ir ao futebol e estar entre adeptos de equipas diferentes, com as tensões que isso provoca, mas também com as trocas de palavras, as piadas, os gozos e as brincadeiras que sempre tornaram o espetáculo futebolístico um lugar onde dava prazer estar.
Mas o negócio traz negociantes que procuram inovar. Os clubes que vendem camisolas parecem ter começado a comparar números de vendas de camisolas e alguns clubes parecem ter começado a entender que o seu estádio ter mais camisolas rivais do que da equipa da casa era um problema que se resolvia com leis. Por isso, em Portugal, vestir uma camisola transformou-se num caso de segurança, criado um efeito legal para proibir determinadas cores em determinadas bancadas. Num país onde também há regulamentos que deixam bancadas às moscas, as leis parecem estar a fazer muito por quem não tem grande interesse em ter pessoas a ver futebol. Acontece que o problema não está na cor das camisolas, mas nas ações de quem as veste. E contra isso os clubes parecem ter muito mais problemas para enfrentar as questões que têm pela frente.
É inacreditável que se continue a simular um mundo de “nós contra eles” em tudo o que se respira no futebol português. Esta semana foi o incrível comunicado do Estoril Praia, que consegue pedir desculpa a uma criança, mas não consegue posicionar-se em relação ao facto de haver quem ache normal intimidá-la. O futebol não é um lugar seguro porque os clubes se retiraram da equação onde deviam ser presença marcada. Na defesa do espetáculo, na defesa de todos os que gostam do jogo, na promoção de um espaço de divertimento. Os clubes, nos seus discursos, reforçaram os adeptos mais vocais na incompreensão de que são precisos dois para dançar esta dança. Um estádio só com adeptos de uma equipa, um jogo onde todos vestem de igual, um campeonato onde uma equipa jogue sozinha, nunca terá o mínimo interesse, porque simplesmente não será futebol.
Daí a minha chamada de atenção para as simulações que realmente importam terminar no futebol. As simulações que chegam de campanhas sem sentido. As simulações das direções de comunicação que tudo transformam numa linguagem de conflito. As simulações de quem é rápido a concluir na condenação das opções de cada um. As simulações de quem transforma rumores em notícias. As simulações de quem não é capaz de aceitar quem verdadeiramente quer viver num futebol saudável. Contra essas simulações, contem sempre com a minha voz para que se acabe com elas.