Uma situação particularmente difícil que devemos enfrentar de uma vez

A vulnerabilidade dos atletas nas relações que estabelecem com os seus superiores hierárquicos (treinadores ou diretores) não é suficientemente enfrentada pelas estruturas de administração das modalidades desportivas. Trata-se de uma questão cultural que precisa de ser ultrapassada e transformada, exigindo-se maior consistência daqueles que têm responsabilidade no processo. Escrevo, muitas vezes, sobre mim para explicar melhor aquilo que encontro nos outros. Este era o caso em que preferia não ter a experiência para o fazer.

Vulnerabilidade

O primeiro grande desafio que tive enquanto treinador foi o de entender como me posicionar perante a vulnerabilidade daqueles que tinha que orientar. Foram meninos e meninas que davam, na sua grande maioria, os primeiros passos numa modalidade, mas sobretudo davam passos numa pré-adolescência que lhes colocava todos os desafios do mundo. Enquanto treinador, ou enquanto “o adulto na sala”, como eu costumava dizer, o meu primeiro compromisso com eles e elas estava na extrema necessidade de defender o seu direito ao conforto no enfrentar do seu crescimento.

Ninguém nos cursos de treinadores nos prepara para isso. Durante a minha formação houve uma pequena conversa, um pouco off topic, sobre a forma como treinadores e atletas se relacionam, que pretendia servir de alerta para que pensássemos um pouco sobre o assunto. Mas não é isso que se avalia em cursos de treinadores, tal como não é isso que se avalia em universidades onde se recebe formação na área. Mais, são muito raros os casos dos pais e mães que estão sensibilizados para este problema, olhando tantas vezes o treinador como um impulsionador de capacidades numa determinada modalidade e menos, ou nada, como um co-responsável na formação dos jovens adultos e adultas.

A minha consciência da vulnerabilidade vinha da minha auto-reflexão, da minha experiência. Eu já tinha sido um atleta pré-adolescente numa relação com um treinador que não tinha a mínima noção da minha fragilidade, nem a consciência a minha imaturidade para lidar com aquilo que me pedia para fazer nos jogos. Uma situação que foi agravada por um episódio de abuso, no mesmo espaço onde praticava desporto, e que ficou guardado dentro de mim até se transformar numa memória podre e contaminante que, ainda hoje, me esforço por ultrapassar. A vulnerabilidade dos atletas não pode continuar a ser culpada e castigada por “adultos na sala” que não o sabem ser, que usam da sua influência para obter um qualquer ganho da relação que estabelece com os jovens.

Cultura

No dia em que foi tornado público um caso de assédio sexual no futebol feminino, o que mais custa é perceber que não se trata de uma situação isolada, mas de mais um exemplo que fornece continuidade a uma cultura de abuso na relação entre treinadores e atletas. Essa cultura de abuso ainda não foi interrompida, na prática, por anos de estudo e produção de conhecimento sobre o papel do treinador, as suas funções e missões, o seu posicionamento no mundo em que se insere. Ainda reina a imagem cultural do treinador enquanto líder implacável, que transforma através do sofrimento as capacidades de um ser humano que se presta a tudo para ser melhor na modalidade que pratica. Uma imagem que não tem, já, qualquer tipo de correspondência com aquilo que deve ser a prática do treinador.

Para os casos concretos, precisamos de uma atuação explícita no enquadramento e condenação dos mesmos, com vista, acima de tudo, a defender os e as atletas expostos à situação. Dos comunicados que foram publicados, ontem, pelo Rio Ave FC e pelo FC Famalicão, fica claro que não foram defendidos os melhores interesses de quem, a seu tempo, procurou denunciar o assunto. A diferença hierárquica entre treinador e atletas não os coloca em pé de igualdade, é sempre necessário assacar maiores responsabilidades a quem está na posição de comando. O enquadramento do atleta no acesso à prática desportiva também não pode ser esquecido: a vontade de participar pode, infelizmente, levar à aceitação dessa tal cultura de domínio que ainda está impregnada. Finalmente, há que saber destrinçar entre crime e correção. Nem sempre aquilo que não entra no território da ilegalidade é correto e deve ser aceite. Os clubes têm essa responsabilidade.

Para as federações, o desafio é cada vez maior. Vivemos num mundo onde o desenvolvimento dos jovens lhes vai felizmente permitindo uma muito maior capacidade de enquadramento das suas experiências em grelhas de leitura que os tornam conscientes daquilo que enfrentam. É esse o passo que os órgãos de administração da prática desportiva têm que dar. São necessários mais profissionais preparados para abordar questões de organização humana, de psicologia, de filosofia e cultura, para que determinadas situações possam ter o acolhimento que merecem e uma abordagem que defenda a sua resolução a contento de todos os intervenientes. A formação de treinadores deve ser cada vez mais exigente nas competências humanas, a consciencialização de outros intervenientes (diretores, elementos do staff, pais e adeptos) um trabalho constante, o acompanhamento da situação geral um elemento fundamental para que todos e todas se sintam em segurança nos respetivos espaços de prática desportiva.

Consistência

Tudo isto surge num dia em que encontrei um vídeo de uma conferência de Ralf Ragnick onde este fala do treinador enquanto alguém que tem um ideal de jogo e que procura, através do seu trabalho, transportar os seus jogadores para o cumprir do seu ideal. Foi no Twitter que esbocei uma primeira leitura, em jeito de contestação, desta ideia. “O treinador deve reger-se por princípios (e não por ideais). Aquilo que deve ter como claro é a sua filosofia de jogo, consistente com a sua forma de treinar e de se comportar. O seu processo tem aspirações de chegar a um ponto, mas nunca é um processo fechado. O contexto dos seus jogadores, do clube onde está, das competições onde se envolve terá um enorme peso na forma como o seu processo se desenvolve. Daí que as equipas chegam a diferentes fins, apesar da partilha de ideais entre treinadores.

Quase sempre as equipas atingem pontos que não podiam ser imaginados no início de um trabalho. O sucesso desse trabalho prende-se com o respeito pelos princípios e filosofia do treinador. É isso que os treinadores referidos (Guardiola, Klopp, Simeone) têm em comum. Consistência.” Escrevi isso sobre a missão do treinador pensando naquilo que desenvolve dentro do jogo, mas agora apercebo-me que isto tem tudo que ver com aquilo que o treinador desenvolve também através das relações humanas dentro do seu grupo de trabalho. A forma que encontrei para responder à situação de vulnerabilidade dos meus atletas nesses primeiros tempos enquanto treinador, teve tudo que ver com filosofia e princípios, que procurei manter constantes durante todo o processo de treino e de relação.

Os ganhos que se podem obter com a constante reflexão sobre a nossa atividade são enormes e nenhum processo é um caso isolado. Existe imensa literatura disponível sobre o papel dos treinadores, sobre as relações hierárquicas, sobre a constituição da nossa identidade, sobre a formação da nossa sexualidade, e existem imensos profissionais que nos podem ajudar a exercer melhor as nossas missões, no trabalho e na vida. Ultrapassar as nossas fragilidades e encontrar um território de segurança é algo que pode demorar muitos anos, uma vida inteira, a atingir. Enfrentar cada problema na total consciência das suas implicações é um passo seguro que todos temos que dar para que mais jovens consigam escapar sem terem que enfrentar situações de abuso.

Depois da pausa

Chamar “pausa” às duas semanas de paragem de campeonatos para a realização dos jogos das seleções é um eufemismo. Foi tempo de leitura, de ver outros desportos, de pensar em muita coisa. Obviamente, também de descansar um pouco a cabeça. Mas a agenda volta a preencher-se com muito futebol. Nos canais Eleven vou estar no Bayern de Munique – Bayer Leverkusen (já hoje), no Crystal Palace – Chelsea (sábado) e no Real Madrid – Osasuna (domingo). Três ligas, três casos interessantes de momento desportivo. Para a Antena 1, comentarei o Vitória – Benfica, na noite de sábado. E tudo isto na antecipação de mais uma entusiasmante semana de Champions League. Mantenham-se ligados!

Comentários

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.