Gerir os desafios, ganhar os jogos

Os números e a sua análise no mundo da bola são, hoje, parte de uma realidade que foi sendo construída ao longo de décadas por detrás dos enormes muros onde o futebol de elite se desenvolve. Para quem vive do lado de cá desta muralha, a importância de saber ler os sinais é fundamental. Até porque é no futebol que se continua a conseguir bater as previsões, fazendo muito com pouco, impondo o lado desportivo ao domínio financeiro.

Uma história de futebol

Rory Smith tenta fazer, no seu livro Expected Goals – The story of how data conquered football and changed the game forever, uma história sobre o impacto da análise de dados na história do futebol nas últimas duas décadas. Seria sempre um desafio complicado, tendo em conta o universo encerrado onde o futebol se desenvolve, num misto de procura do pormenor que fará toda a diferença e de pânico de que algum adversário lá chegue primeiro. Como livro de história, será um processo falhado. No entanto, consegue transformar o processo em algo muito interessante, na forma como descreve as várias pessoas que fazem parte desta história, e na maneira como a sua escrita evidencia a própria vivência no mundo do futebol.

Quem chegar a este livro à procura de dados sairá frustrado. Quem estiver aberto a uma boa história, terá aqui algo que aprender. O percurso de Chris Anderson, co-autor do livro The Numbers Game – Why everything you know about football is wrong (outra recomendação), é especialmente interessante. Professor em Cornell depois de um longo percurso académico e entusiasta de futebol, Chris Anderson encetou uma caminhada que o faria trabalhar no futebol a partir da ideia de que os dados e a sua análise transformariam a forma de se trabalhar nesta modalidade. A forma como desliza da sua área profissional, com interesses focados nas relações políticas, para a área da análise de dados, a maneira como decide escrever um livro e procurar um clube para colocar as suas ideias em prática, o desenlace do seu primeiro emprego a tempo inteiro no futebol e a experiência a que acabou exposto é todo um hino sobre o que é o mundo da bola rolando sobre a relva.

A determinado ponto, Chris Anderson percebe que enquanto passou muito tempo a mudar-se da sociologia, área onde desenvolveu parte dos seus estudos, para os números, é mesmo na questão das relações sociológicas que o seu emprego no futebol acaba por exigir a maior parte do seu foco. Pelo caminho, em vários outros clubes, muita gente desenvolveu um profundo trabalho na utilização de dados e análise dos mesmos para revolucionar parte daquilo que se faz no futebol de elite. Mas, ao mesmo tempo, a história de Anderson é uma espécie de assunção daquilo que ainda continua a dominar o jogo. Mesmo que de forma irrealista, lateral, desfocada do dia-a-dia da maior parte dos técnicos, é a sorte da bola entrar ou não entrar, e a forma como todos lêem esse eventualidade, que tem maior impacto na gestão das equipas.

E, no entanto, ela move-se

Foi Rúben Amorim que já lembrou, esta temporada, que os resultados mudam a forma como se analisa o seu trabalho. Essa parece ser a realidade à tona da água. Uma série de bons jogos e bons resultados levam a que o técnico do Sporting acabe elogiado. Uns jogos menos bons, resultados inesperados frente a equipas de menor estatuto e, de repente, a equipa e o treinador estão em causa. Parece mesmo ser uma matemática simples, sempre preparada para ser legendada como resultadista. E, no entanto, não é isso que acontece. Não é a análise que se desequilibra numa frágil e simplista leitura dos resultados. É mesmo o trabalho da equipa que não é capaz de garantir uma continuidade na forma como se apresenta em jogo.

O grande resultado do Sporting em Londres voltou a assentar na capacidade dos leões terem bola no meio-campo ofensivo. Um dos jogadores com mais influência nesse processo tem estado à parte do sucesso da equipa leonina na Europa, primeiro por lesão, depois por conveniência com a ideia de que três avançados mais velozes permitiriam outra capacidade para surpreender adversários. Paulinho. O avançado é peça essencial na equipa do Sporting e uma explicação melhor para os altos e baixos da equipa na presente temporada. Sem o avançado em campo, este Sporting é uma equipa com menos capacidade para ler espaços de ataque. Em Londres, no primeiro tempo, Paulinho serviu para a posse e para a transição. Teve contributo enorme no lance do golo de Edwards. Explicou, na prática, porque tem que ser titular nesta equipa.

Ao mesmo tempo, Paulinho também acabou a demonstrar porque é tão difícil de substituir. No contexto nacional, não sobram jogadores com este perfil. No contexto internacional, o Sporting não tem, neste momento, capacidade de penetração. O meio-campo é outro bom exemplo desta questão. Após a saída de Matheus Nunes, o Sporting tentou uma compra rápida no mercado que pudesse substituir o internacional português, comprando Sotiris Alexandropoulos, um jogador que ainda não estava no ponto e que não haveria sequer a segurança de poder crescer para se adequar às funções. Um mês e meio após a sua chegada, foi ultrapassado na hierarquia por Mateus Fernandes. O jovem jogador da Academia parece estar mais perto de ser opção, nesta fase. O Sporting terá que continuar a jogar na sua capacidade formativa enquanto se mantiver esta dificuldade para agir no mercado.

Ultrapassar as previsões

Benfica e Porto estão apurados para os oitavos-de-final. Existe a forte possibilidade de Portugal ter três equipas nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, quando, por exemplo, a Espanha terá apenas uma equipa. É uma incrível demonstração de força desportiva, num formato onde a capacidade financeira tem sido lei. Para além do mais, dos três grandes portugueses, apenas o Benfica chega a esta temporada com alargada capacidade de aposta no fortalecimento do plantel. Roger Schmidt tem tido espaço para impor as suas ideias com um grupo onde sobram as boas opções, sublinhando-se o trabalho do técnico alemão na forma como aproveitou os recursos humanos do clube (o destaque dado a António Silva, Florentino, Rafa, João Mário e Gonçalo Ramos demonstra bem da abertura do técnico para potenciar o talento existente) em conjugação com a chegada de novas contratações.

Independentemente do que acontecer na derradeira jornada, o Benfica discutirá o primeiro lugar até ao último minuto com um dos baluartes do futebol-finança mundial. Uma enorme demonstração de que, no futebol, o aproveitamento dos recursos é um caminho muito mais acertado para alcançar o sucesso do que a existência de recursos aparentemente ilimitados. Uma ideia que também assentará muito bem ao FC Porto de Sérgio Conceição. Depois da quebra, em casa, perante um Clubb Brugge que surpreendeu nesta edição da Liga dos Campeões, os azuis e brancos foram ao território do adversário pagar na mesma moeda. Com um onze onde a marca do treinador também aparece de sobra.

Pepê como lateral-direito, o já histórico na Liga dos Campeões Zaidu, Stephen Eustáquio e Galeno. Um conjunto de jogadores que muito deverão ao seu treinador, na maneira como este acredita neles, os trabalha, os molda, até os transformar em jogadores de um nível muito mais alto do que aquele a que pareciam apontar. Para além do mais, o FC Porto consegue este apuramento com uma dupla de centrais, Fábio Cardoso e David Carmo, que nunca demonstraram nível para ir além do campeonato português. É certo que conta com um talento extraordinário como Diogo Costa na baliza. É certo que ainda tem Uribe, Otávio e Taremi como expoentes de experiência. Mas numa equipa onde as opções do plantel não abundam e parecem até estar em momento de quebra, o trabalho continuado de Sérgio Conceição mostra bem como é possível ultrapassar as previsões, alcançando muito com pouco. Não é uma fórmula milagrosa. É apenas o encontro da maneira apropriada para gerir os dados recolhidos e optar por soluções que se equilibrem com os desafios.

É no jogo que se aprende o jogo

Mais um fim-de-semana com muito futebol. Na Liga Portuguesa, estarei nos comentários do Benfica – Chaves, sempre na Rádio Antena 1. Para o futebol internacional, foco no Brighton – Chelsea, com o regresso de Graham Potter à sua antiga casa, e no Real Madrid – Girona, para além dos habituais programas na Eleven Sports, onde também marcarei presença para a derradeira jornada da Liga dos Campeões.

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