O Mundial, o lugar de fala, o futebol e o que podemos fazer

Aquilo que acontece no mundo tem muitas formas de ser visto ou lido. Dependendo de quem somos, do lugar que ocupamos no mundo, daquilo a que aspiramos. Assim será com este Mundial. Assim é com o futebol, que pode e deve ser aproveitado no poder transformador e de diálogo que oferece.

Mundial e lugar de fala

Foi só esta semana que me caiu a ficha. Segunda-feira de manhã, na saída para o meu treino diário, olhava para as ruas como se estivéssemos nas férias de verão. A uma semana do início do Mundial, só assim poderia ser. Mas o tempo cinzento e os miúdos a caminho da escola vieram demonstrar-me a evidência. Este ano, o Mundial desenrola-se em tempo de inverno e de escola. Impossível! Como é que os miúdos e as miúdas que adoram futebol vão fazer para acompanhar todos os jogos, ter o prazer de acordar para, de pijama, ver o jogo da manhã, passear-se devagar pela casa enquanto se faz tempo entre os jogos de tarde e noite? Pensei um pouco e lembro-me de faltar a aulas para ver jogos de Europeus e Mundiais. Lembro-me de estar na Faculdade e falhar também uma aula para ver um jogo no Bar e, no final do mesmo, ter que relatar os acontecimentos a um professor. Depois de começar a trabalhar, primeiras semanas de fases de grupos foram, quase sempre, semanas de férias, para me dedicar a ver os jogos. Quantos, este ano, poderão fazer o mesmo?

Ao mesmo tempo, este primeiro parágrafo, por mais amoroso que seja, é apenas uma visão bastante eurocêntrica do problema. A forma como lamentamos um Mundial que não se desenrola no nosso verão esquece-se que grande parte do mundo esteve sempre obrigado a ver os Mundiais a desoras – um eterno México 86 comigo fechado no quarto obrigado “a dormir” enquanto o meu pai via o Portugal – Marrocos na sala. Metade do mundo teve todos os Mundiais no Inverno, um número inqualificável de gente passou Mundiais com fome, ou sem casa, ou sem saber o que lhe iria acontecer no dia seguinte. Os Mundiais jogaram-se sempre em contextos muito afastados do dia-a-dia da grande maioria das pessoas do mundo. Uma espécie de exibição de privilégios que se começou a escrever no primeiro Mundial, quando a seleção da Roménia beneficiou de uma intervenção real para ter a equipa – e jogadores para a mesma – inscrita e a jogar no Uruguai.

O Mundial que começa neste próximo domingo será o primeiro a ser realizado num país árabe, muçulmano. Um país que tem enormes lacunas no que aos direitos humanos, direitos climáticos, direitos de trabalho, direitos das mulheres, liberdade sexual diz respeito. Ao mesmo tempo, um país que dentro do quadro de outros países árabes e muçulmanos tem feito o seu caminho para se ocidentalizar, transformando o seu pequeno território numa espécie de símbolo do desenvolvimento e da tecnologia à custa das enormes quantidades de dinheiro ganhas na exploração dos seus recursos naturais. Os problemas deste Mundial mudam de forma consoante o nosso ponto-de-vista, o nosso lugar de fala, o nosso lugar no Mundo. Para uns, serão problemas comezinhos, fáceis de ultrapassar. Para outros, problemas gigantescos, que colocam em causa a sua existência. Um Mundial que, para lá do futebol, terá que nos obrigar a fazer pensar no nosso lugar na vida.

Futebol, não a FIFA

Gianni Infantino ofereceu-nos, esta semana, mais um bom exemplo da enorme confusão que os agentes da FIFA continuam a fazer, misturando aquele que é o poder do futebol e o que será o poder da FIFA. Depois de ter pedido às seleções presentes para se concentrarem no futebol, decidiu sugerir o período de realização do Mundial como um momento de paz, onde a guerra cessasse, focando-se na realidade do território ucraniano. Uma confusão especialmente dolorosa de vermos alguém com responsabilidades fazer. O futebol e o desporto sempre tiveram o poder de se transformarem em agentes de paz e de diálogo. Combatentes da Primeira Guerra Mundial pararam combates para jogar, países que de outra forma não seriam capazes de engendrar forma de se relacionar continuam a defrontar-se em campo, onze contra o onze. O futebol tem essa capacidade. A FIFA não. A FIFA retirou à Rússia a possibilidade de disputar este Mundial. A FIFA tem tido leituras díspares para com vários países e vários conflitos pelo mundo inteiro. A FIFA não tem direito a elevar-se como símbolo de qualquer paz. O futebol, sim.

É pelo futebol que se continuará a fazer o caminho que é preciso travar para encontrar equilíbrio e pacificação nas nossas vidas. Vários trabalhos jornalísticos têm aproveitado estas últimas semanas para relembrar todo o processo de atribuição dos Mundiais de 2018 e 2022. Não há dúvida de que, em 2010, o processo da FIFA e os seus intervenientes estava estagnado, marcado pela corrupção e completamente desinteressado daquilo que seria o impacto da sua principal competição para lá das conquistas financeiras. Esse é o primeiro passo que deve ser marcado de forma a não poder ser esquecido. As atribuições de grandes eventos precisa de impor regras mais claras quanto ao impacto social e humano das suas realizações. Praticamente todos os intervenientes das votações de 2010 acabaram afastados das suas funções. Nunca nenhum outro Mundial tinha alertado de tal forma para os problemas do país que o realiza – e já houve Mundiais, como Jogos Olímpicos, em muitos países com historiais bem preocupantes. Estamos a dar mais um passo. É um passo curto, tremido, incompleto. Mas um passo.

Mais importante do que aquilo que se irá passar durante o Mundial, deve preocupar-nos aquilo que se passa antes e, acima de tudo, porque aí poderemos intervir, no que se passará depois. A forma como um jornalista dinamarquês foi abordado por forças de segurança no Qatar é um alerta com evidências de algo que se tem verificado a quem tenta trabalhar no país. Não parece haver grandes dúvidas de que o Mundial se realizará com muito menos momentos como este. Mas aquilo que acontecerá depois, a forma como os habitantes do Qatar, aqueles que trabalham no Qatar, as mulheres, os homossexuais, aqueles que simplesmente querem falar do que lhes apetecer serão tratados nesse país é uma coisa que nos deve preocupar. Como nos deve preocupar, e sobre isso devemos intervir, aquilo que vai acontecendo por todo o Mundo. A essas aulas não precisamos de faltar para ver o Mundial. É realmente possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Aproveitar um jogo para saber mais daquilo que nos rodeia.

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