Um Outro Mundial (II)

Sigo o Mundial 2022 com artigos diários no site AbrilAbril. Aqui deixo o resumo da última semana, com todos os textos publicados a encarar este Mundial como uma oportunidade para percebermos como se conjugam as diferentes realidades políticas e sociais em volta de um encontro de futebol.

25/11

O futebol praticado por homens num campeonato de vários campeonatos

Há jogadores a precisar de apoio no Catar, tal como existem ideias a precisar de quem as defenda. Entre a pressão que toca os catarianos que querem brilhar em casa, os senegaleses sem a sua estrela e a afirmação daqueles que lutam pela liberdade onde ela insiste em ser limitada.

Há homens para lá das polémicas

O nervosismo parece ter atacado os jogadores do Catar na partida de estreia deste Mundial. Erro nosso que, no foco que colocamos nas grandes questões que rodeiam o país organizador, pouca atenção acabámos por dar aos homens envolvidos na sua representação. A seleção catariana leva anos a preparar-se para esta competição. Um enorme investimento que coloca o talento de um conjunto de jogadores que nunca atuou ao mais alto nível perante uma situação insustentável. Com os olhos do mundo sobre a sua atuação, terá eventualmente sentido mais a exigência que os seus compatriotas lhes colocaram no dia de estreia.

A derrota frente ao Equador acabou por ser natural. Mas o vencedor da Taça Asiática, com passagens aceitáveis na Copa América e na Gold Cup, terá que mostrar algo mais. O seu grupo, no entanto, não lhe permite facilidades. O Senegal fez uma interessante exibição perante os Paises Baixos, mostrando que há vida para lá de Sadio Mané. A sua foi uma das derrotas com sabor de injustiça. Merecendo mais, não somou qualquer ponto. Pelo que com menos de uma semana de competição teremos um jogo de vida ou morte. Entre aqueles que jogam em casa e aqueles que tentam construir uma casa sem o apoio da sua maior estrela. O futebol não se deixa levar pela empatia, quando toca a eliminar os que não são fortes o suficiente.

O campeonato dos protestos e da diplomacia

O Irão não cantou o seu hino, Sardar Azmoun foi aplaudido por ter dado voz aos manifestantes, Mehdi Taremi e os seus companheiros não festejaram os golos marcados. No entanto, o seu treinador tentou reduzi-los a “rapazes que só querem jogar à bola”. Há muitos casos em que não parece haver uma conexão direta entre o que vemos acontecer e aquilo que os intervenientes querem que nós vejamos acontecer. O Irão joga bem perto de casa, o que permitiu que algumas mulheres pudessem, pela primeira vez, ver um grande jogo de futebol nas bancadas de um estádio. É inegável que os iranianos e iranianas anseiam por respirar ares de liberdade. Nada adianta que uns quantos atores tentem tapar os nossos olhos das evidências.

Os jogadores alemães taparam as bocas para a fotografia, os jogadores dinamarqueses entraram com camisolas onde os seus emblemas apareceram quase apagados, mas a braçadeira da One Love não entrou em campo, apenas nos braços de uma comentadora inglesa e de uma ministra alemã. No entanto, dirigentes e políticos ingleses, alemães e dinamarqueses foram consistentes e insistentes na maneira de expressar as suas ideias e posições, colocando-se como porta-vozes de uma sensibilidade que tem tocado este Mundial visto da Europa. Nesse campo, já há vencedores a agraciar.

26/11

O tornozelo de Neymar, Messi e o feiticeiro


As lesões continuam a atormentar o Mundial 2022, com Neymar a transformar-se em mais uma
dúvida. Por outro lado, depois de uma entrada em falso, a Argentina tem um sinal a dar, num
grupo onde a Arábia Saudita recebe a ajuda de um autêntico feiticeiro.


Sentado no chão, a face de Neymar Júnior parecia antever um reencontro com uma dor já
conhecida. Havia um estranho conforto de quem sabe exatamente aquilo que está a viver. O
jogador de futebol de 30 anos conhece demasiado bem o seu corpo. As dores não lhe surgem por
surpresa, são uma situação constante, com a qual se aprende a viver e a lidar. Mas as lesões são
algo de diferente. Um jogador pode aguentar a dor. A lesão é quem o faz parar. O inchaço no
tornozelo, quando saiu do relvado já sem bota ou meias, fala de uma forma que o olhar de
Neymar não saberia explicar melhor.


O médico da seleção brasileira veio pedir calma, no final do encontro frente à Sérvia. Não havia
como ditar uma sentença sobre a situação física do líder da equipa brasileira. É preciso esperar.
Talvez seja o mais difícil de pedir aos adeptos que vivem este jogo como uma religião. Não
adianta fazer nada – fazer gelo, talvez. Terá de ser o corpo a sentenciar como recupera e como
permitirá a Neymar a voltar a jogar neste Mundial. Entretanto, o Brasil segura a sua respiração,
assiste condicionado aos festejos de uma vitória que ameaçam ser a crónica de uma ausência
anunciada. No silêncio do seu quarto de hotel, o corpo de Neymar tem um caminho a percorrer.


Messi e o feiticeiro


O anunciado último Mundial de Lionel Messi começou com uma derrota. Do outro lado estava um
francês com fama de feiticeiro. Hervé Renard fez a sua fama em África. Depois de uma carreira de
jogador sem grande expressão e um início de caminho enquanto técnico nas divisões secundárias
de França e Inglaterra, fez as malas para a Zâmbia, um país que na década de 90 conjugou os
seus tempos mais áureos com os seus tempos mais negros. Faltava a esta seleção um título e
Renard entregou-o em 2012. Três anos mais tarde, repetiu o feito com a Costa do Marfim. Só em
Marrocos acabou por falhar a sua missão. O que acabou por o fazer mudar de continente.
Na Arábia Saudita encontrou uma realidade diferente. O talento disponível não parece tão natural,
não nasce tão solto nas ruas de uma país fechado e desconfiado de si próprio. No entanto, as
estruturas e os clubes existentes oferecem condições que não se encontram em África. Tal como
os meios oferecidos por um Estado que trouxe o futebol para tentar aliviar o que as suas políticas
e as suas ameaças regionais parecem não permitir: um certo encanto para lá da obediência. O
feitiço de Renard voltou a revelar-se. Depois de uma primeira parte sofrível, os sauditas
responderam com uma qualidade poucas vezes vista. E bateram a Argentina, do seu embaixador
para o Turismo Lionel Messi. Coração, história e dinheiro, dentro de campo, nem sempre têm o
destino traçado da forma como se espera.

27/11

Tempo para festejar um último golo


Em pleno Mundial de futebol, morreu o bibota Fernando Gomes. Nunca estaremos bem no
momento em que sabemos que uma estrela que nos encantou na infância acaba de falecer. Um
momento para relembrar um senhor dos relvados.


Há coisas que nunca esqueceremos. Em fevereiro de 1984, conheci pessoalmente Fernando
Gomes. O FC Porto jogava em Torres Vedras e o avançado não havia sido convocado para o jogo
da Taça de Portugal. Quis o destino que fosse almoçar à Serra da Vila, a aldeia onde viviam os
meus avós paternos e onde eu frequentava o jardim escola. Foi um autêntico alvoroço, quando
começou a correr a notícia de que um carro desportivo vermelho estava estacionado no largo,
defronte do café do José Inácio, que também por ali tinha um restaurante. Imagino que o meu
próprio almoço tenha decorrido na ânsia de ver o Gomes. E foi isso que aconteceu. Depois de
comer o Fernando Gomes foi até ao café, distribuiu alguns calendários autografados e até pegou
o meu irmão mais novo ao colo – coisa que o fez ser do FC Porto até que o próprio Gomes tenha
mudado de clube.


Há mesmo coisas que nunca esqueceremos. A quantidade de golos que Gomes marcava, a forma
como festejava, como parecia tornar fácil esse gigantesco segredo que separa os vencedores dos
aspirantes. Fernando Gomes deitado numa cama do hospital, depois de uma operação, a explicar
como viveria a final da Taça dos Campeões Europeus de 1987 distante do relvado onde pertencia.
Gomes a mudar-se para Lisboa, continuando a passear classe com a camisola do Sporting.
Gomes a passar os anos mas a ter sempre aquela deferência e atenção que os grandes craques,
aqueles craques que não têm mesmo comparação, sempre têm para quem os admira. Tal como
nunca esquecerei que foi entre jogos deste Mundial que caiu essa triste notícia. A notícia de que
Gomes iria agora marcar golos noutra dimensão. Nunca te esqueceremos, Bibota.


Luis Enrique e a comunicação direta


Esqueçam as horas marcadas e as perguntas limitadas das conferências de imprensa, esqueçam
as ilusões das fontes seguras sobre este ou aquele assunto, a comunicação direta chegou ao
Mundial 2022 pelas mãos de um treinador que continua a inovar a toda a linha. Luis Enrique, o
selecionador espanhol, criou uma conta no Twitch, plataforma de vídeos, onde de forma regular
tem passado a conversar com os seus seguidores sobre tudo aquilo que acontece com a sua
seleção, os seus jogadores, este Mundial e a sua estadia no Qatar. À hora em que estou a
escrever este artigo, mais de 670 mil pessoas seguem a sua conta, com número de visualizações
que excedem a quantidade de seguidores. Não é a comunicação do futuro, é o presente a
apresentar-se de forma inequívoca.


A segurança de Luis Enrique nas decisões que toma fazem muito lembrar aquilo que foi como
jogador. Ao comando da seleção espanhola, impôs uma rotação nas convocatórias, demonstrando
de forma clara uma tendência de distribuição de oportunidades que quebrou o mito do “grupo da
seleção”. A juventude que impregna no seu grupo também marca diferenças. Pedri, depois de ter
sido figura no Europeu do ano passado, volta a estar no onze, onde tem agora a companhia do
ainda mais jovem Gavi. Mas na sua equipa também há lugar para experiência, com o meio-campo
do Barcelona a ter enquadramento completo na “La Roja” com Sergio Busquets a entrar na
equipa. O jogo de estreia deixou o sabor a delícia, com uma goleada sobre a Costa Rica. Hoje o
teste terá outras exigências, perante a Alemanha. Mas na forma como Luis Enrique quebra
barreiras, dá vontade de respirar o mesmo ar que a seleção espanhola respira por estes dias.

28/11

Cristiano Ronaldo do tamanho do mundo


Batido mais um recorde e acrescentada mais uma linha ao extenso currículo de Cristiano
Ronaldo, é bom lembrar que houve um dia em que ser Cristiano Ronaldo não parecia uma
possibilidade. Uma viagem ao mito do melhor jogador português de sempre.

Antes de Cristiano Ronaldo ser o Cristiano Ronaldo, o seu nome era um mito que poucos sabiam
se existia, realmente, ou não. Houve quem o visse a jogar nos escalões de formação do Sporting.
Houve quem soubesse dele pelas presenças nas seleções jovens. Mas para a maioria, como eu,
comum mortal, Cristiano Ronaldo era apenas um nome, uma conjugação de nomes que ainda
precisavam de sentido. Antes de Cristiano Ronaldo aparecer como jogador, apareceu ainda como
figura de um jogo de computador, o Championship Manager, que na sua edição 2001/02 o lançou
na sua base de dados sem que isso o transformasse em tudo aquilo que ele foi depois. Por uma
simples razão. Antes de Cristiano Ronaldo existir, não era possível que alguém acreditasse na
possibilidade de um jogador como ele.


O mais impressionante em Cristiano Ronaldo é o facto de ele ter estado tão perto de nós sem que
o víssemos. O menino do bairro social madeirense que viaja, ainda criança, para Lisboa. O puto
que vivia no Estádio de Alvalade e com o qual nos teremos cruzados umas quantas vezes, sem
sequer dar por isso. O jogador de quem tudo se esperava a dar as primeiras passadas em jogos
estranhos da Liga Portuguesa, num tempo em que as notícias e os acontecimentos tinham um
tempo próprio, reflexo da inexistência de redes sociais ou de ciclos noticiosos que nunca deixam
de criar notícias sobre notícias. Cristiano Ronaldo já era grande, sem dúvida. Mas Cristiano
Ronaldo ainda não era Cristiano Ronaldo. Ainda teria que cometer erros, ultrapassar desafios, ser
colocado perante as dúvidas que resistem sobre a sua mera possibilidade de existir.


Mais uma linha para o currículo


O homem que ganhou quatro Campeonatos do Mundo de clubes, duas Supertaças europeias,
cinco Ligas dos Campeões, um Campeonato Europeu e uma Liga das Nações ainda não está
satisfeito. O homem que venceu três Ligas inglesas, duas Ligas espanholas, duas Ligas italianas
e uma quantidade de Taças pelos países onde jogou ainda quer mais. O homem que mais vezes
jogou por uma seleção, que mais golos marcou ao representá-la. O homem que jogou cinco
Campeonatos do Mundo. O primeiro a conseguir marcar golos em todos eles, algo que parecia
impossível de conseguir na competição masculina, depois de Marta e Christine Sinclair o terem
feito no Mundial feminino.


O currículo de Cristiano Ronaldo não tem fim. Tal como a sua ambição. O seu desejo de continuar
a transformar a possibilidade de se ser Cristiano Ronaldo em algo maior. O futebol, no entanto,
não é um território de eternidade. Na memória, sim, ficam-nos os elementos que nos tocaram, que
nos emocionaram, que nos espantaram. Mas, no presente, o futebol é uma entrada dura a pés
juntos naqueles que o querem só para si. Daí que os recordes pareçam mais pequenos quando
vemos alguém a atingi-los. No passado, parecia impossível ser-se Cristiano Ronaldo. Hoje em dia,
quer-se que ser Cristiano Ronaldo seja algo banal. Mas não é.


O Uruguai quatro anos depois


Em 2018, foi o Uruguai que eliminou Portugal do Mundial. A sua capacidade competitiva, a sua
garra e agressividade, chegaram para demonstrar como a seleção portuguesa não merecia ir mais
longe na competição. Passados quatro anos, Portugal está mais jovem e mais forte. O Uruguai, no
entanto, mantém a sua dimensão de vizinho chato que sabe como transtornar os desejos e
sonhos de quem passa ao seu lado. A estreia de Portugal não foi entusiasmante, mesmo que a equipa tenha dominado o Gana. Os erros defensivos mancharam um resultado final que poderia
ter sido diferente. O Uruguai, no entanto, é mais do que um jogo. É, até, mais do que uma
oportunidade para garantir já o apuramento. É o adversário perante o qual poderemos marcar
definitivamente a ideia de que este Portugal é um Portugal diferente. A bola vai rolar.

29/11

O dia dos encontros de queridos inimigos

No grupo A, três equipas lutam pela possibilidade de apuramento, enquanto no grupo B todos têm aspirações. Momento para fazer as contas e olhar para quem tem estado em melhor forma neste Mundial.

O Grupo B encerra as suas contas com encontros de caras-metade. A Inglaterra já marcou golos suficientes para quase ter como garantido o apuramento. O País de Gales, por sua vez, jogará por um milagre. A afirmação das nacionalidades no seio do Reino Unido tem sido feita a diferentes velocidades. No caso do País de Gales, anexado a Inglaterra no Século XVI, a sua escassa população nunca terá permitido o crescimento de uma simbologia local ao nível da dos escoceses. Mas os galeses projetam, em breve, serem reconhecidos a nível internacional por Cymru, a forma como se identificam na sua própria língua. O desporto terá, aí, uma papel importante, mesmo que a generalidade dos seus jogadores tenham raízes partilhadas com as restantes nacionalidades do Reino Unido. Nunca o País de Gales venceu a Inglaterra num jogo organizado pela UEFA. Daí que o encontro de irmãos pareça ser encarado como uma mera formalidade para os ingleses.

Irão e Estados Unidos são estimados inimigos. Em 1998 encontraram-se as duas seleções no Mundial disputado em França e a vitória dos iranianos foi encarada, localmente, como uma prova de superioridade dos árabes. 2022 oferece-nos um retrato diferente. Desde logo, quem vencer, terá garantida a qualificação para a fase seguinte do Mundial. Será um jogo a doer, pelo que acontece dentro e pelo que acontece fora de campo. Os Estados Unidos vivem este Mundial como uma preparação para a competição que vão co-organizar em 2026. O Irão vive num momento de enorme conflito social no seu território. O futebol permite-se, assim, a interferir na história e a transformar-se como um momento de diálogo e de superação. Venda-se aquilo que se vender no final do encontro, é de um grande jogo que aqui falamos. Para fazer contas sobre quem merecerá seguir em frente.

Merecer ou desmerecer

Quando começa a derradeira jornada da fase de grupos do Mundial 2022, começamos a viver a possibilidade de ver equipas interessantes a ficar pelo caminho. É o que parece mais provável no confronto entre o Senegal e o Equador. Os senegaleses deram mostras daquilo que valem para além de Sadio Mané. Um dos grandes ausentes desta competição fez falta a uma equipa bem organizada e competitiva, mas o Senegal de Aliou Cissé demonstrou poder merecer chegar mais longe. Pela frente, no entanto, terá uma das equipas mais entusiasmantes deste Mundial. O Equador chegava com alguma promessa, depois da qualificação na América do Sul. O jogo de abertura perante o Qatar deixou no ar a sua qualidade. Mas foi o enorme encontro perante os Países Baixos, a intensidade ofensiva demonstrada toda a partida, que melhor revelou um conjunto que pode sonhar em marcar a sua história.

Os Países Baixos começaram este Mundial bem devagar. Mas não se podem queixar da sorte. Somaram três pontos num jogo perante o Senegal onde não terão feito o suficiente para vencer. Somaram mais um ponto num jogo frente ao Equador onde parecia certo que mereciam perder. Fizeram aquilo que as equipas que chegam longe costumam fazer. Sobreviveram aos dias maus. Falta, no entanto, perceber onde os neerlandeses vão encontrar o seu melhor dia. Louis Van Gaal já experimentou uma frente de ataque mais explosiva, bem como já tentou ter Klaassen a ditar a forma de atacar. Em ambos os casos, a equipa ficou aquém. O Qatar, que já está eliminado, ainda não será o teste definitivo a esta equipa. Mas costuma ser preciso mostrar mais para se ser considerado um favorito.

30/12

O encanto da primeira vez

Há mulheres sauditas nas bancadas, há um golo que faltava, há uma oportunidade que não podia deixar de ser aproveitada. O futebol não muda os grandes problemas do mundo, mas, caso a caso, permite a alguns cumprir os seus sonhos de infância.

Um Mundial tão politizado, discutido e analisado não deixa, no entanto, de ser um Mundial onde os contrastes se continuam a evidenciar. O Mundo assume diferentes faces conforme o lugar de onde o olhamos. E se parece haver alguma satisfação por se confirmar que os homens e as mulheres ocidentais beneficiam de amplas liberdades para viver este evento no Catar, não deixa de ser sintomático como outros países e outras realidades continuam a viver a prova. Enquanto espaço onde se cruzam essas diferentes realidades, atraídas por um jogo de futebol, as ruas desta península contam histórias de vidas que poderiam ter sido, no esforço de todos aqueles que a ajudaram a construir e que acabaram apagados, como o mural que homenageava estes homens junto ao Estádio Lusail e acabou por desaparecer quando o Mundial começou.

Por detrás daqueles que desaparecem, outros têm a oportunidade de aparecer. Como Mariam Meshikhes, mulher saudita entrevistada pelo The Guardian, que viveu o seu primeiro jogo de futebol ao vivo, num estádio, em pleno Mundial do Catar. São pequenos sinais de abertura do estado saudita, permitindo que as mulheres saiam do país, o que leva a que entre os adeptos da Arábia Saudita alguma presença feminina seja notada. O peso da cultura e da tradição ainda impõe o controlo dos homens sobre as mulheres. Mas para Mariam, a possibilidade de viver pela primeira vez a sensação de liberdade de noventa minutos na bancada representa uma ponte para um outro mundo que lhe parece, agora, possível de encontrar. É que enquanto os grandes problemas continuam a ser alvo de luta e discussão, os pequenos casos individuais ainda podem ter o direito a viver o encanto da primeira vez.

Lewandowski e um sonho de criança

Trinta e quatro anos de idade, treze épocas a marcar centenas de golos ao mais alto nível entre Alemanha e Espanha, uma vitória na Liga dos Campeões, muitos títulos nacionais e uma carreira reconhecida como a de um dos melhores avançados dos nossos tempos não deixavam Robert Lewandowski sossegado, porque um sonho de criança ainda estava por cumprir. Faltava marcar um golo num Mundial. Falhada a presença em 2014, 2018 não lhe dera a oportunidade para fazer aquilo que “Lewangoalski” sabe fazer melhor. E mesmo no Catar as coisas pareciam não resultar. Ficou em branco na primeira jornada perante o México, procurou e procurou fazê-lo frente à Arábia Saudita, mas só ao minuto 82 o seu destino se cumpriu. Não há grande que não encontre, pelo caminho, uma dificuldade que ainda lhe falte ultrapassar.

Laidouni, o rejeitado

Aissa Laidouni entrou no Mundial escancarando a porta, com um corte de bola festejado como se logo ali tivesse conquistado o campeonato. A sua enorme exibição permitiu um empate à Tunísia, resultado que as Águias de Cartago não conseguiram repetir perante a Austrália. Mas o festejo de Laidouni tinha uma história por trás. Pela primeira vez a jogar um Mundial, depois de se ter estreado em grandes competições pela porta da Taça das Nações Africanas, Laidouni sentia-se a superar a sua própria história. Nascido em França, de pai argelino, o seu sonho de pequeno terá sido o de vestir as cores verdes e brancas da Argélia. Formado no Angers, sem se conseguir fixar no plantel profissional, o seu sonho parecia desvanecer-se, até que encontrando oportunidades na Roménia, primeiro, e na Hungria, depois, o seu nome foi finalmente considerado. O selecionador Djamel Belmadi, no entanto, tinha outras prioridades. E foi a Tunísia quem acabou por aproveitar.

1/12


Os Diabos belgas vivem dentro de casa

A derrota frente a Marrocos deixou a Bélgica em má posição e foi o suficiente para se descobrir quão mal vão as coisas no balneário dos Diabos. A Costa Rica ainda sonha, com forte apetência para o trabalho mental, enquanto o Canadá não mediu as palavras e diz, agora, adeus.

Todas as seleções têm que ultrapassar uma espécie de inferno particular em determinado momento da sua história. A encarar o ocaso de uma grande geração de jogadores, a Bélgica entrou neste Mundial com o desgaste acumulado das belas histórias que não procuram um final feliz. Frente ao Canadá, a vitória surgiu mesmo sem que a equipa fosse a melhor em campo. Perante Marrocos, a superioridade dos africanos impôs-se de tal maneira que a Bélgica precisa agora de salvar a face frente a uma Croácia a viver um momento de maior confiança. Mas a derrota perante Marrocos não foi apenas desportiva. Foi também a peça que faltava para soltar os ecos de uma realidade que é vivida no grupo liderado pelo espanhol Roberto Martínez.

O selecionador reconhece as tensões e as marcas que a derrota impôs. Mas depois de Kevin De Bruyne ter reconhecido que este já não seria o tempo para a Bélgica vencer e vários jogadores terem tido gestos públicos de insatisfação, o resumo de um reino desunido começou a desvendar-se. De Bruyne e Thibault Courtois não se falam há alguns anos por causa de uma desavença privada. Michy Batshuayi e Romelu Lukaku não conseguiram ultrapassar uma rivalidade que tem azedado. Eden Hazard e Leandro Trossard também não trocam palavras, situação agravada quando este último, jogador do Brighton, afirmou que era ele quem deveria ser titular neste Mundial. Um barco que parece à deriva e que entra hoje em campo para uma partida que pode ser a da despedida.

A mente do sobrevivente

Depois da derrota por sete golos de diferença sofrida na estreia, a Costa Rica arriscava-se a deixar de ser história nesta competição. Frente ao Japão, na segunda jornada, a principal preocupação parecia ser a de não sofrer golos. Foi preciso esperar quase toda a partida para que os Ticos tivessem, finalmente, um remate enquadrado, com o lateral Fuller a aproveitar um deslize da defesa nipónica. Gonda, o guarda-redes, ajudou à festa e a Costa Rica voltou a vencer um jogo num Mundial. As esperanças continuam magras, para a seleção da América Central mostrou compensar com força mental a diferença de qualidade futebolística. Luiz Fernando Suárez, o colombiano que orienta este conjunto, não dispensa o trabalho de um psicólogo, que acompanha os jogadores em campo, conversa com eles sobre o funcionamento do cérebro e organiza sessões de meditação. Poderá a mente garantir uma surpresa frente à Alemanha?

Aprender a comunicar

John Herdman foi o primeiro treinador a marcar presença na fase final de um Mundial feminino e de um Mundial masculino. O seu trabalho com a seleção canadiana é um sucesso em construção, retornando a um grande palco depois de uma única presença em 1986 e preparando as bases para o Mundial que vão coorganizar em 2026. Mas a sua proposta de “vamos f**** a Croácia” como mote para atacar os vice-campeões mundiais saiu furada. A sua jogada acabou por motivar os croatas a uma vitória que os deixa mais perto da fase seguinte e o Canadá definitivamente afastado deste Mundial. Herdman terá mais quatro anos para afinar um projeto futebolístico que prometeu a atacar e se desmoronou a defender. Mas também na arte de comunicar terá algo a precaver para o futuro.

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