Momentos de decisão, momentos de reflexão. Continuamos com o diário do Mundial 2022, apontando os vários temas que saem dos jogos, dos países e das pessoas envolvidas. Um Mundial que continua a ter diferentes caras, olhando-se a todas elas, nos meus artigos que vão sendo publicados no AbrilAbril.
9/12
Dramas e desventuras do último passo de Van Gaal
Uma figura carismática e polarizadora, Louis Van Gaal regressou para um último Mundial com o foco na vitória. Hoje enfrenta o seu carrasco de 2014, uma Argentina que continua a ser-lhe superior. Haverá um derradeiro momento para o neerlandês consiga escrever a história à sua maneira?
Nunca subestimemos o poder de um regresso a um lugar onde temos contas para a ajustar. No último trabalho de Louis Van Gaal, a sensação de que existe algo a provar não o largou. Agora, até, de uma forma um tanto mais brutal, o técnico neerlandês entende que as venturas do seu caminho podem ter ficado marcadas pelas desventuras de alguns dos dias. E Van Gaal quer mudar essa sua sorte. Saído de uma escola de futebol que sempre privilegiou o toque, a arte, a capacidade de nos envolver numa fronteira onde espetáculo e jogo se abraçam com sensualidade, aos 71 anos, o selecionador dos Países Baixos quer ganhar.
A proposta da seleção laranja não nos agarrou na fase de grupos. Muitas vezes, no futebol, aquilo que é capacidade de resolução de problemas pode, facilmente, confundir-se com sorte. O que é certo é que os Países Baixos ultrapassaram os quatro jogos realizados até aqui sem a sensação de ficar para trás de qualquer adversário. Defenderam a sua baliza e atacaram de forma impiedosa as fragilidades dos rivais. Uma história que, no jogo, é sempre muito mais do que aquilo que parece. Se nos habituámos a uma cultura neerlandesa feita de uma certa liberdade na afirmação de princípios estéticos, também é verdade que, na sua prática social, o ser-se impiedoso é uma marca natural.
Por isso, quando dizemos que esta laranja já não tem o sabor ou a aparência da de outros tempos, talvez estejamos a confundir conceitos. Os mesmos conceitos que levam a que exista quem pensa que entre a opção estética com que se joga e o ganhar têm uma correlação evidente. E talvez, na sua ânsia de enfrentar um último Mundial com uma faca nos dentes, tendo pelo caminho a mesma Argentina que o eliminou em 2014, Louis Van Gaal cometa o erro dos principiantes, ignorando toda a capacidade das suas virtudes para apenas afiar uma lâmina que é só parte daquilo que pode alcançar. Não há qualquer ponto negativo na capacidade de nos transformarmos num drama. Ser-se Van Gaal é, seguramente, uma forma de o reconhecer.
O herói de aparência vulgar
Luka Modric nunca se colocou em bicos de pés, o que para um médio criativo de um metro e setenta e dois num mundo de adversários bem mais corpulentos poderia parecer necessário. Deu também um pouco a ideia de que passava demasiado tempo nos lugares onde prometia ser rápido. Dínamo de Zagreb e Tottenham pareceram sempre pequenos para todo o talento que Luka carregava consigo. Até no Real Madrid, quando o contrataram, poucos saberiam dizer o que Modric poderia ser. Ele que já vai na sua décima-primeira temporada no clube, sendo peça essencial da conquista de cinco Ligas dos Campeões, tendo sido nomeado Melhor Jogador do Mundo e mantendo-se com um vigor e uma jovialidade que escondem todo o talento que carrega consigo.
Este mesmo Luka Modric transportou a Croácia até à final em 2018 e volta a demonstrar que é um herói para todos os que estão consigo. Na seleção croata, parece não haver noção de algo os limita. Apesar de um grupo de jogadores que talvez já não seja tão completo, que talvez tenha algumas fragilidades, a Croácia entra em campo à imagem de Luka e instala-se no jogo para o transformar. Talvez o Brasil seja demasiado. Mas não será por isso que não veremos os croatas a executar o seu jogo, a tornar a sua luta e a sua expressão em algo que conquista quem gosta de ver futebol. No meio dos resultados, Luka Modric continua a transportar-nos para outro lugar. Um lugar onde a aparência não é juiz, mas a forma como se abraçam os desafios, sim. Um pequeno herói que não teremos como esquecer.
10/12
Identidade, cultura e o jogo de Portugal
Se a falta de tempo para treinar leva a identidades menos definidas, os jogos de seleções são um campo perfeito para entender como se afirma a cultura de uma equipa em campo. Campo onde a história nunca acaba, mesmo quando se convive com o legado de um dos melhores do mundo.
No futebol, ter uma identidade é ser-se quem se é. Normalmente, essa identidade é construída. Através do planeamento do treinador e dos processos de treino, constrói-se uma ideia de um jogar que se procura replicar em campo. O exercício de transformar ideias em concretizações, no futebol e na vida, choca sempre com os obstáculos que se encontram. Dentro do campo, uma outra equipa nas exatas condições que transportamos, luta por um objetivo semelhante. Daí que, tantas vezes, aquilo que projetamos acabe por não acontecer. Pelo menos na exata medida das nossas ambições. O que o jogo nos ensina é que os caminhos se fazem nos terrenos que se encontram. A nossa capacidade de entender a melhor forma para chegar ao golo é aquilo que é realmente testado.
Fernando Santos sempre se queixou de, numa seleção, não ter tempo para treinar. Provavelmente uma ideia que já terá passado pela cabeça de Didier Deschamps ou Gareth Southgate. Daí que, ao contrários dos clubes, seja bastante mais difícil de encontrar essa identidade singular nos jogos de seleções. O que muitas vezes nos salta à vista é a cultura de jogo de um país, de um conjunto de jogadores, mais do que o génio de um treinador. Para melhor expressar uma cultura, no entanto, é necessário que ninguém se meta no caminho a limitar essa demonstração. É disso que os selecionadores acabam por ser acusados. De inverter, pelas suas escolhas, um caminho natural que aparece aos olhos dos adeptos na conjugação do melhor onze, daquele que reúne os melhores jogadores.
Mas dentro de um grupo de atletas, os melhores juízos são sempre aqueles que são feitos com os dados de quem nele vive. Longa e dolorosa injustiça para quem tem sobre isso falar ou escrever (mea culpa, mea culpa!). Até porque aquilo que uma cultura desvenda nunca é uma ligação direta entre os elementos. Bem pelo contrário. O mundo em que hoje vivemos mescla tradições e origens, conjuga conhecimentos e informações, reparte por diferentes caixas a maneira como crescemos e nos entendemos uns aos outros. Essa diversidade é um desafio para quem está na linha da frente para organizar uma equipa que representa um país. Mas é também por aí que os selecionadores percebem como podem passar, de um dia ao outro, de culpados a salvadores. Não é tanto uma questão de sorte ou azar. É só mesmo preciso que, no momento certo, tudo esteja alinhado para que a bola entre.
O campo é uma história sem fim
Não foi no Catar que Portugal deixou de ser a equipa do melhor do mundo. Esse período de transição iniciou-se no outono de 2018, quando depois da desilusão do Mundial da Rússia, Cristiano Ronaldo se focou na sua integração na Juventus e deixou a equipa entregue a uma nova geração para a fase de grupos da Liga das Nações. Nesse momento, Portugal mostrou que poderia bem ser a equipa de Bernardo Silva, fortalecida num conjunto de jogadores que ofereciam uma capacidade competitiva que permitia que a Seleção se mantivesse entre as melhores. Os últimos quatro anos viveram-se com duas realidades paralelas. O Portugal de uma dinâmica de jogo nova conjugado com um ponta-de-lança que continuava a transformar em golo cada bola que tocava.
Aquilo que acabou por se confirmar no Catar foi um processo histórico de transformação de uma equipa. Se todas as polémicas que rodeiam Cristiano Ronaldo nestes últimos meses parecem transformar o acontecimento numa telenovela, a verdade é que é o rendimento desportivo a ditar as transformações. Da tal identidade não trabalhada, emerge uma cultura que tem tudo que ver com a maioria dos jogadores da Seleção. Dinâmicas de liberdade e de criação de espaço, enorme solidariedade na maneira como se rodam posições, talento e criatividade para engendrar respostas aos esquemas defensivos rivais. O enorme legado de Cristiano Ronaldo encontra-se, aqui, com o enorme potencial de uma equipa que tem outros horizontes para alcançar o mesmo objetivo. Porque no campo a história nunca acaba.
12/12
Individualismo, a doença infantil do mediatismo
Na análise à prestação da seleção nacional no Catar, a confusão entre o gestor e o treinador impediu a equipa de alcançar melhor rendimento desportivo. Enquanto, no exagero da procura dos culpados, vê-se escapar a perceção das responsabilidades coletivas.
Portugal foi eliminado nos quartos-de-final do Mundial 2022. Enquanto meta, um resultado dentro das expetativas. Portugal consegue o seu terceiro melhor Mundial de sempre, num contexto onde a equipa apresentava potencial para aspirar a algo mais, mas onde acabou por apresentar um futebol de altos e baixos e sem ser capaz de se afirmar dentro do maximizar das suas capacidades e características, algo que era apontado como objetivo do seu treinador. Fernando Santos foi o primeiro agente desta ideia de individualismo que tocou quase todos os aspetos da análise à equipa nacional no Mundial do Catar. O excessivo foco nas características dos seus jogadores como elemento definidor do jogo que a equipa poderia alcançar acabou por deslocalizar responsabilidades e fazer perder um fio que se espera encontrar numa equipa.
Na primeira pergunta que lhe é feita depois do encontro, questionado sobre o que teria acontecido que pudesse explicar a incapacidade para obter outro resultado, Fernando Santos disse “não sei”. Entre a sua expetativa e o resultado parecia não existir um processo de trabalho que pudesse ser explicado ou questionado. Aliás, depois da conquista do Europeu 2016, esse parece ter sido o destino da equipa nacional sob o comando de Fernando Santos. Tendo tido o enorme mérito de transformar uma equipa nacional que se encontrava em cacos numa equipa campeã europeia, o Engenheiro nunca conseguiu potenciar a quantidade de talento que teve ao seu dispor. Geriu sempre bem um balneário que, no passado, era um foco de problemas, mas foi incapaz de desenvolver os aspetos ligados ao rendimento desportivo. Um bom gestor não é suficiente para fazer uma boa equipa de futebol.
A caça ao culpado
O selecionador tem responsabilidades, mas não é o culpado. Existe todo um processo a sustentar a sua manutenção na posição e a avaliação do seu trabalho terá vários outros pontos de análise que ficarão para ser tratados e, esperemos, explicados, pelo Presidente da Federação. Mas no espaço mediático não deixa de parecer que para explicar a derrota num jogo de futebol é mesmo preciso encontrar um culpado. Cristiano Ronaldo parece ter sido, durante boa parte deste Mundial, o candidato ideal. Sem o rendimento desportivo que apresentou no passado, envolto em problemas pessoais e num momento de incapacidade para entender a sua utilidade na equipa, o internacional português sofreu com o facto de estar num pedestal há demasiado tempo. Cristiano Ronaldo foi culpado pelo que fez e pelo que não fez. Mas, uma vez mais, olhando até para tudo aquilo que foram as explicações dos seus companheiros de equipa e a gestão da sua utilização, o facto é que Cristiano Ronaldo se apresentou dentro daquilo que seria de esperar.
Rúben Neves foi outro dos alvos apontado como culpado. Um jogador que é titular em quatro dos cinco jogos da equipa nacional, que apresenta diferentes comportamentos e rendimento nos vários encontros, taxado como responsável da incapacidade coletiva. Mas também o dedo pôde ser apontado a Diogo Costa, como o responsável de um golo sofrido num jogo decisivo, ou a qualquer outro jogador que não tenha feito aquilo que se esperava como ato salvador e redentor de todo um país. Esse exercício de individualização das culpas no espaço mediático é um problema com o qual o país se reflete nos vários temas que nos afetam. O futebol apenas nos oferece um campo mais reduzido, imediato e perceptível. Tentar encontrar um culpado isolando-o do trabalho coletivo é uma boa forma de crucificar o sofrimento e não atender às causas profundas dos acontecimentos. Uma tentação à qual devemos resistir, por respeito à necessidade que temos para com nós próprios de não deixar nunca de tentar perceber o mundo.
13/12
Messi ou a vã glória de mandar (dar uma volta)
Enquanto imitação da vida, o futebol é um constante campo de observação de tensões. A exigência de perfeição a que o jogo nos leva não deve, no entanto, incapacitar-nos para perceber o alcance dos acontecimentos. E não haverá argentino para quem seja fácil comparar-se com Maradona.
O jogo de futebol é uma imitação da vida, na medida em que se concentram num curto espaço de tempo todas as tensões que o trabalho, as relações sociais, as paixões, a cultura e a tradição nos impõem, para além da questão competitiva que acaba por dar um resultado à exposição e choque de intenções que o jogo nos provoca. Dessa imitação da vida procura-se, no entanto, uma perfeição que nos é, no quotidiano, inalcançável. Uma perfeição que é exigida ao coletivo, que não pode ter qualquer tipo de falha. Ao jogador, que mistura numa mesma dimensão aquilo que é enquanto trabalhador, no exercício da sua profissão, com aquilo que é enquanto representação da heroicidade admirada por milhões de adeptos. Ao próprio jogo, ao qual se pede espetáculo e resultado encapsulados numa só medida.
Essa perfeição é depois transformada nas exigências que são colocadas aos atores do jogo, desprendendo-se de entendimentos emocionais que a própria disputa origina. Como se quase nunca se percebesse que aquilo que está em choque são duas equipas, com diferentes jogadores, mas com os mesmos objetivos. Ora, dessa incompreensão que é gerada num misto de ambição desmedida e incapacidade para ler a realidade que se observa, cresce uma falha que separa cada vez mais os intervenientes daqueles que assistem aos seus feitos. Acabamos, no final de contas, a afastarmo-nos cada vez mais daquilo que os jogadores e as equipas realmente fazem, das dinâmicas que o jogo nos oferece, mas nos concentrarmos em imagens recortadas que implicam, quase sempre, o entendimento de uma outra realidade.
A Argentina não chorará por mim
A Argentina entrou neste Mundial com o peso de transportar o seu mais genial jogador do século XX num deus. Para se ser maior que Maradona é preciso ser-se maior do que o mundo. Messi veio para a Europa ainda uma criança, desenvolveu-se numa academia das melhores do mundo em Barcelona, num clube que se redesenhou à imagem do talento deste jogador. Maradona cresceu nas ruas, enfrentou o profissionalismo como um caminho para a sustentação da sua família, lutou contra um futebol que era cruel e agressivo como uma guerra sem regras, representou o seu país em pleno conflito militar com uma potência europeia. Não se deseja ser Maradona impunemente e o peso do último Mundial de Messi fez com a equipa argentina tremesse. Um tremer que se sentiu frente à Arábia Saudita, à Austrália e, uma vez mais, frente aos Países Baixos.
Os encontros entre albicelestes e laranjas são um clássico dos Mundiais. E o que pudemos assistir na passada sexta-feira entre para a galeria de épicos. Com os neerlandeses a aproveitarem os dez minutos finais para restituir vida à contenda, o prolongamento e os penáltis permitiram um quadro de enorme tensão que tocou todos os intervenientes. As imagens de provocações entre as duas partes confirmam o ambiente que se sentia no jogo. Quando a derrota parece mais inevitável, todos os sentidos são acionados de forma a salvar a pele e o resultado. Quando os argentinos festejam na cara dos neerlandeses, quando Messi manda Weghorst ir à sua vida, aquilo que um europeu sentado no seu sofá de privilégio vê é a sempre eterna maleducação dos latinos. Neymar e Cristiano Ronaldo já foram vítimas dessas mesmas leituras. Mas do lado do sul-americano aquilo que se regista é essa capacidade de não se vergar perante uma autoridade que insiste em colocar as regras acima dos acontecimentos. E o que aconteceu é a possibilidade de se poder continuar a acreditar no alcance da divindade. O que não é coisa pouca para qualquer jogador.
14/12
Marrocos, um plano para a história
A primeira equipa árabe e africana a jogar as meias-finais de um Mundial assenta o seu jogo na organização e na disciplina, algo que confirma um longo processo de decisões que torna a composição da atual seleção possível.
Este não será nunca o Mundial das respostas simples para as realidades complexas. Aliás, se este Mundial nos pode oferecer alguma coisa – e pode – é o constante exemplo de que a realidade tem mais bases onde se assentar do que na nossa pressa de encontrar uma explicação que abarque tudo. Marrocos, que hoje será a primeira seleção árabe e africana a disputar uma meia-final de um Campeonato do Mundo de futebol, é só mais um exemplo. Este acontecimento histórico resulta de um conjunto de decisões, processos e deslocações que torna a seleção marroquina um conjunto singular.
Sendo esta a sua sexta presença num Mundial, Marrocos nunca se terá fixado como uma força dominante no futebol africano. O único título de seleções surgiu na Taça de África em 1976. Nos anos 80, ao atingir os oitavos-de-final no Mundial e ver duas das suas equipas vencer a Taça dos Campeões Africanos marcou o seu período áureo. Algo que, ao nível de clubes, apenas superou nos anos 90, com três títulos, e depois cerca de dezoito anos sem grandes feitos até que o Wydad voltasse a ser campeão africano em 2017 e 2022, este último sob o comando de Walid Regragui, o atual selecionador.
A história do selecionador é uma conjugação de diferentes histórias com um final feliz. Walid nasceu em França, onde estudou e fez praticamente toda a sua carreira de jogador profissional, ao mesmo tempo que mantinha fortes ligações ao país dos seus pais, com visitas anuais em tempo de férias. A sua chegada à seleção marroquina, enquanto jogador, acontece já como atleta da primeira divisão francesa e acabou por cimentar essa identificação que foi prolongada, no final da sua carreira, com o cumprimento de parte da sua formação técnica em Marrocos e uma carreira de treinador repartida entre Marrocos e o Catar, sempre marcado pelo sucesso.
A promoção a selecionador nacional aconteceu, no entanto, poucos meses antes deste Mundial, a 31 de agosto. Vahid Halilhodžić, o seu antecessor, teve um percurso marcado por vários conflitos com jogadores que acabaram por se afastar da seleção, como foi o caso com Ziyech e Mazraoui, duas das estrelas da caminhada no Mundial. A prestação na última Taça das Nações Africanas também foi pouco convincente, o que abriu portas para uma mudança de última hora que teve um enorme impacto nesta equipa. Não só com o regresso dos mencionados jogadores, bem como na transformação do jogo coletivo, que passou a ser marca de identidade para a nova realidade marroquina.
Ainda assim, este conjunto de jogadores é resultado de um processo de longo prazo. Primeiro com a construção da Academia de Futebol Mohammed VI, em 2008, que permitiu a existência de um trabalho de formação de jogadores mais organizado e mais focado nas exigências do futebol atual. Com esse trabalho de base a ser feito, a Federação marroquina organizou uma rede de identificação de jovens atletas com ascendência marroquina, apostando na sua diáspora para reforçar os quadros da seleção. Por isso, entre os 26 jogadores presentes no Mundial, Marrocos conta com 14 atletas nascidos na Bélgica, Países Baixos, França, Espanha, Itália e Canadá, cruzando-se com quatro atletas formados já na Academia nacional. Num prazo de catorze anos a realidade da seleção marroquina transformou-se radicalmente.
França e Marrocos, um encontro com diversidade
A progressão da seleção neste Mundial fez com que a equipa se encontrasse com vários países onde existem enormes comunidades marroquinas. Na fase de grupos, a Bélgica ficou pelo caminho. Já nas eliminatórias, a Espanha foi surpreendente ultrapassada. A história far-se-á perante a França, naquele que será o primeiro encontro oficial entre os dois países. Um protetorado francês até 1956, as relações entre os dois países sempre foram intensas. Desde o início do século XX que se assinala uma enorme comunidade marroquina em território francês, com números que superavam o milhão e trezentos cidadãos em 2008, entre nascidos em Marrocos e segunda e terceira geração já nascida em França.
Esta relação levará a que história deste jogo se faça num clima de intimidade. Com vários dos seus estágios de observação de jogadores jovens a serem realizados em França, os encontros entre equipas francesas e marroquinas são constantes. Olivier Giroud, avançado francês, e Walid Regragui, o selecionador marroquino, foram companheiros de equipa. A escritora Leila Slimani, em entrevista ao jornal L’Équipe, disse viver este momento com especial emoção. Se para ela, filha de um antigo presidente da Federação marroquina, este é um momento de concretização de uma velha aspiração de afirmação do futebol do seu país, por outro, sendo também cidadã francesa, verá com felicidade o avançar da equipa da França para atacar mais um título mundial.
Os bons exemplos não deixam, ainda assim, de ter que ser confrontados com as situações de exclusão da comunidade magrebina em França e o crescimento de tensões associadas ao fortalecimento da extrema-direita no território. Desde sábado passado, no momento em que as duas seleções garantiram o apuramento, que se lançou a ideia de um eventual choque de culturas. As imagens de confrontos e de intervenção policial pareceram enquadrar-se num discurso de violência que, ainda que sendo latente em espaços de exclusão social, não representam a totalidade da relação entre as comunidades. França e Marrocos são, hoje, duas equipas onde convive uma diversidade de origens debaixo da mesma bandeira. O futebol como oportunidade.
15/12
Catar 2022, narrativas e consequências
Um Mundial que tornou global a discussão do papel do futebol na nossa sociedade e que abre portas para uma conversa que tem que ser mantida. Catar 2022, as narrativas que gerou e as consequências deste evento.
Quando em dezembro de 2010 o Catar foi escolhido como país organizador do Mundial 2022, poucos se atreveriam a adivinhar como essa opção teria enormes consequências na forma como a FIFA se organizava, na maneira como a opinião pública mede as escolhas de uma grande organização de direito privado e no peso que essa transformação pode ter em toda a sociedade. Ao mesmo tempo, a forma como se festejou, no momento da decisão, a realização do primeiro Mundial no Médio Oriente, parece hoje toldada pelas diferentes leituras desse facto e o seu impacto na realização do mesmo em território catariano.
Todo este processo teve enormes custos e não creio que seja possível vê-lo como totalmente positivo – a transformação estará longe de ser concreta, muito menos global – mas indica suficientes graus de leitura para que possamos enquadrar o Mundial do Catar como um ponto de viragem. A narrativa da FIFA tende a ignorar boa parte do seu real potencial transformador, ignorando os territórios de leitura sociais e culturais de análise ao evento, para se focar nas pequenas vitórias do concreto, apostando sobretudo nos feitos que tenta correlacionar com mudanças reais no Catar. Mas se ao nível das leis de trabalho a situação sofreu ligeiras alterações, a realidade genérica do país manteve-se inalterada. A FIFA não detém o mesmo poder transformador do futebol.
É esse o custo que a opinião pública pode e deve medir. O Catar fez um enorme investimento para garantir a realização desta competição e para montar todas as estruturas que o permitiram levar até ao fim com a sensação do dever cumprido. No entanto, esse aposta sobretudo financeira careceu de verdadeiros sinais de pertença a uma nova realidade. Os direitos dos migrantes no território continuam a levantar enormes questões, bem como os direitos das mulheres e os homossexuais. É bom ter em conta que durante este torneio se percebeu que a aposta feita numa seleção feminina no Catar foi abandonada a meio do processo, entendendo-se como uma medida de maquilhagem que foi largada assim que os seus intentos foram alcançados.
Por outro lado, é bom não esquecer que o Catar transposta em si contradições – quer na forma de ser, quer na forma de ser visto – que colocam em choque duas visões do mundo. Para o mundo árabe, a conquista alcançada pelos catarianos é uma prova de poder e capacidade para organizar grandes eventos mundiais. O Catar é visto, em comparação com países vizinhos, como uma sociedade mais aberta e com mais respiro económico, não deixando, ao mesmo tempo, de ser encarado como uma sociedade contraditória, onde o aspeto religioso e o comportamento social dos seus mais ricos nem sempre parece afinar-se com as expetativas dos seus compatriotas. Nesse sentido, o Catar acaba por ver falhar parte dos seus objetivos. Se por um lado a forma como o mundo olha para este país garante a aceitação da sua existência – algo que na sua história recente continuou em causa – por outro o seu reconhecimento leva a uma cada vez maior exigência sobre o seu papel no mundo.
O Catar aproveitou o Mundial para anunciar acordos de fornecimento de gás natural com a Alemanha e a compra de material militar com os Estados Unidos da América. Nessa linha, consegue enquadrar-se numa comunidade internacional que sente como vital para manter a sua posição geopolítica defendida. Mas também foi neste período que saíram a público denúncias de corrupção de eleitos no Parlamento Europeu, com uma investigação que agora decorre, mas que já levou à prisão de quatro pessoas, incluindo uma vice-presidente desta instituição, exigindo cada vez mais clareza sobre os objetivos definidos pelos elevados investimentos feitos pelos catarianos – não só em clubes de futebol e em eventos, mas também em organizações privadas, instituições académicas e empresas.
Um outro Mundial será possível?
Todas as questões levantadas pela organização deste evento pelo Catar e a evolução, no mundo atual, de uma opinião pública mais disponível para colocar questões e para procurar esclarecimentos, acabou por tornar este Mundial o mais político de sempre. As investigações de jornalistas ingleses e norte-americanos iniciadas desde o momento da escolha do Catar sobre a forma como a mesma tinha sido realizada, levou a uma pequena transformação na maneira como os Mundiais são definidos, bem como na descoberta de vários processos de corrupção a envolver pessoas com altas responsabilidades na FIFA e nas confederações continentais. Por outro lado, foi também o Mundial onde mais foram questionados os investimentos e a forma de execução de obras públicas de enorme envergadura e o legado que estas deixam no país – lembrando processos já vistos, mas com menor impacto mundial, nos Jogos Olímpicos de Atenas ou no Europeu de futebol realizado em Portugal. Finalmente, as investigações sobre os direitos humanos nos territórios organizadores deste tipo de eventos levou a uma consciencialização sobre as lutas e sobre a maneira como estas são vistas pelo mundo.
O Mundial 2026, que será co-organizado pelos Estados Unidos da América, o México e o Canadá levará a nova discussão sobre os direitos humanos, o racismo e o tratamento da população migrante nestes territórios. A escolha do Mundial 2030, marcada para daqui a dois anos, terá que ter em conta todas estas situações, não esquecendo que entre as candidaturas estão territórios em guerra, como a Ucrânia, candidata em conjunto com Portugal e Espanha, ou países como a Arábia Saudita, conjuntamente com Egito e Grécia, que levantará, de forma geral, o mesmo tipo de questões com que o Catar foi confrontado este ano. A FIFA não se transformou e o poder do dinheiro continuará a ser essencial na definição de uma realidade que tenta seguir incólume aos protestos das populações. No entanto, 2022 criou vias de conversa que dificilmente serão abandonadas num futuro próximo.
É esta, eventualmente, a narrativa mais forte que encontro neste Mundial 2022. A forma como o mesmo terá libertado a maneira como falamos de futebol e do seu peso na sociedade. Não como um elemento que perturba o entendimento das realidades das nossas vidas, mas como um espaço onde encontramos forma de nos esclarecermos sobre as mesmas. O futebol e tudo o que o rodeia permite-nos assistir à formação, enquanto campo de experimentação, de muitas das situações que nos tocam diretamente, a nível social, político, cultural. Como um evento de massas, permite-se a essa experiência, ao mesmo tempo que nos pode servir de alerta para a maneira como nos podemos defender daquilo e daqueles que tentarão atacar os nossos direitos. Falar abertamente deste tipo de problemas é uma conquista da qual não devemos largar a mão. Para que de uma série de más decisões possa nascer, finalmente, um campo de reflexão e renovação da forma de funcionar do mundo.