Um outro Mundial (V)

Entregas finais de um outro Mundial que vivemos, ao longo deste mês, na escrita diária de artigos para o AbrilAbril. Messi cumpriu o seu destino, com o título a ir para a Argentina, numa final que será recordada. Mas também para recordar há muita coisa que fica a marcar este Mundial como um dos mais preocupantes de sempre. Assim se aprenda a viver o Mundial como ele deve ser vivido.

16/12

De que falamos quando falamos de futebol

Fazendo um balanço da forma como se comunicou em Portugal ao longo deste Mundial 2022, entende-se aquilo que é o discurso dominante e o discurso mais presente. O futebol enquanto laboratório da maneira como se quer intervir na sociedade.

Uma semana de preparação e um mês de competição. Está prestes a fechar-se a cortina sobre o Mundial 2022 e assim se pode fazer um balanço sobre a maneira como “falar de futebol” se tornou, ao longo destas semanas, num exercício com diferentes enquadramentos. Se, de uma forma geral, o tema futebol se impregna com imensa facilidade no dia-a-dia dos portugueses, acumulando grandes audiências nos meios audiovisuais e transformando-se em língua-franca para as conversas de café e de elevador, também é certo que o “falar de futebol” foi conquistando, ao longo dos anos, uma carga negativa que se associa, sobretudo, a certas vestes que este acontecimento pode tomar.

Dessa maneira, o Mundial 2022 não se excluiu daquela que parece ser a atual “normalidade”. O foco nas situações de tensão e a criação de polémicas é, hoje, uma ferramenta à mão de quem procura alimentar audiências. Estando mais do que provado que os posicionamentos polarizados são aqueles que mais respostas geram nas redes sociais, essas opções também acabaram por conquistar parte do tempo de antena dos canais por cabo, onde são as questões mais polarizadas que ganham destaque. Ainda assim, se formos analisar a forma como se fala de futebol na televisão, na rádio e nos outros meios de comunicação portugueses, veremos que esse não será o tipo de conversa que ocupa mais espaço. Em diferentes canais tivemos, ao longo deste Mundial, possibilidade de escutar conversas sobre a forma como se joga, sobre a realidade do país onde a prova se realizava, sobre as histórias dos adeptos que vivem no Catar ou que até lá viajaram, entre outras tantas histórias. No entanto, apesar de ser essa a conversa a merecer mais tempo de antena, não é essa a conversa dominante.

Talvez seja aqui que nos devemos focar. Ao nos afastarmos da análise dos dados concretos sobre o tema, acabamos por embarcar na facilidade com que somos tomados pelo pensamento dominante. Assim, em lugar de analisar o rendimento desportivo de Cristiano Ronaldo e o seu impacto na utilização como titular, parece ganhar mais peso a maneira como se tentam desenhar análises especulativas sobre os comportamentos do jogador. Em lugar de entender as questões criadas pela posição de Fernando Santos, ameaçado por temas externos ao seu trabalho, como o seu contrato, neste Mundial, toma-se com muito mais facilidade o tentar entender as suas ações através de preconceitos criados ao longo dos tempos. Os próprios atores influenciam essa presença de um tratamento mais especulativo de forma dominante. Vários jogadores e o próprio treinador se queixaram dos momentos negativos da conversa em volta da seleção sem que nenhum tenha dado o mínimo destaque a exemplos positivos que fomentam uma conversa mais profunda sobre o jogo e os acontecimentos.

Vivemos tempos em que a informação se conjuga com o entretenimento, de uma forma profunda, na procura de conquista de atenção. A produção de imensos conteúdos leva a que, no entanto, as pessoas tenham cada vez menor capacidade para se focarem no entendimento de cada mensagem. Ganha assim muito maior importância a reflexão que podemos fazer sobre cada ação. Porque se, por vezes, oferecemos enorme peso a uma opinião ou a um trabalho partilhado nas redes sociais, a realidade é que qualquer dessas coisas só chega à maioria das pessoas como uma espécie de resumo, de flash, e não como algo completo. Nessa realidade, a procura de entendimentos mais profundos não perde espaço no território mediático, mas exige que novas formas de aí participar sejam levadas em linha de conta. O futebol é assim um laboratório, um campo que nos prepara para a intervenção noutras áreas da nossa sociedade. Assim o saibamos enquadrar.

17/12


Argentina – França, muito mais do que um jogo

A dança dos presidentes por uma foto com as estrelas do jogo, o encanto literário da Argentina pelo desporto do pontapé na bola, as tensões nacionalistas que uma equipa multicultural sob o signo da França procura atenuar. A antevisão de tudo o que está em jogo na final do Mundial.

Nenhum Mundial de futebol se realizou sem que a política nele estivesse presente. Mesmo entre aqueles que recusam a politização do futebol se sente o fascínio do jogo como degrau para aparecer num palco aos olhos dos seus concidadãos. Assim foi com Emmanuel Macron, presente na meia-final entre França e Marrocos e com lugar marcado para a final. O presidente francês não fez apenas figura de corpo presente. Insistiu em visitar os balneários de vencedores e vencidos, passeando a sua imagem entre franceses e marroquinos. Na sua ânsia de marcar agenda através de um auto-simbolismo imbuído pelo espírito do diálogo, Macron teve mesmo que esperar à porta do balneário dos marroquinos, que o fizeram esperar, seguramente sem grande vontade de participar num espetáculo que não era seu.

É essa ânsia de participar no espetáculo que deverá fazer Alberto Fernández, presidente da República Argentina, atravessar mares e continentes para marcar presença na final do Mundial. O ano passado fez viagem mais curta, até ao Rio de Janeiro, para assistir à final da Copa América, onde os argentinos festejaram a vitória, mas não se predispuseram a tirar uma foto presidenciável. Tem sido, aliás, essa a marca da Argentina de Messi. Sobretudo porque, no país, se preparam já as eleições para o ano de 2023 e a vontade de colagem de Alberto Fernández tem sofrido enorme oposição da sua opositora Cristina Kirchner, preocupada com a eventualidade desse trunfo futebolístico poder mudar a vontade popular. Enquanto os líderes políticos se subjugam para aparecer na fotografia, a população não se deixa enganar. Curiosamente, em Portugal, a ânsia do presidente Marcelo Rebelo de Sousa estar na linha da frente do comentário aos jogos da seleção, mais do que reforçar o seu papel presidencial, retirou-lhe um necessário distanciamento que se pede a quem terá mais com que se ocupar ao gerir os destinos da nação.

Uma Argentina só coração

O encanto do futebol argentino esteve sempre na comunhão que unifica o que acontece dentro de campo com aquilo que se gera fora dele. No Catar, a presença massiva de adeptos argentinos, conjugando as cores nacionais com símbolos dos clubes que admiram, cantando e vibrando antes, durante e depois dos jogos, transformou as suas partidas no melhor símbolo da conquista do espaço público pelo povo apaixonado pelo jogo. Essa dimensão ajuda a explicar a transformação em divindades daqueles que chutam a bola pelo relvado. Assim foi com Diego Armando Maradona, que se fez bem mais do que ser um jogador, na forma como liderou a equipa, mas também o povo, na luta pelos seus direitos e afirmação. Assim se espera que Messi o faça também.

Mas futebol e Argentina têm uma relação bem mais profunda, presente na sua literatura, na sua vida, na forma como bate o seu coração. O uruguaio Eduardo Galeano terá sido dos autores que melhor foi capaz de descrever esta forma de se ser argentino e apaixonado pelo futebol. Mas é também da Argentina que nascem os cruzamentos aparentemente improváveis. Como ver um jogador campeão do mundo, depois treinador e dirigente, a tornar-se num escritor, num intelectual do jogo, na maneira como semanalmente nos descreve aquilo que vê acontecer no futebol que continua a ser a sua razão de viver. Jorge Valdano tem sido visto nas bancadas do Catar, com aquele ar cansado das figuras convidadas para uma festa que, seguramente, se habituaram a viver de outros modos. Mas as suas palavras continuam a encantar-nos. Como se a Argentina já fosse campeã, mesmo antes dos jogos começarem.

As muitas Franças numa só

O futebol francês há muito que se transformou numa verdadeira montra da diversidade de origens que compõem, hoje, a população francesa. No grupo de Deschamps encontramos jogadores com ascendentes nos países da Península Ibérica (o avô materno de Griezmann, Amaro Lopes, emigrou de Paços de Ferreira no final dos anos 50), na Ásia (Filipinas), no Caribe (Martinica) e um pouco por toda a África. Na língua, na literatura, na música, em todas as áreas da vida pública, a França do século XXI é um país diverso e aberto. Mas onde essa diversidade penetra, também a resistência se manifesta. E no final do encontro das meias-finais, entre França e Marrocos, vários militantes da extrema-direita foram identificados pela polícia por se envolverem em ações de violência e agressão a adeptos marroquinos.

O discurso de Eric Zemmour na defesa das “ruas francesas” de uma invasão árabe encontrou espaço para ecoar no acontecimento desportivo. A rápida ação policial não evitou confrontos mais graves em Paris e Lyon, bem como uma morte por atropelamento de um jovem de 14 anos em Montpellier, ainda em investigação, segundo a edição de ontem do jornal Libération. Essa tensão alimentada por forças que se recusam a permitir que as populações encontrem o seu caminho para melhorarem as suas condições de vida mas, pelo contrário, procuram incendiar as suas preocupações para ações contra aqueles que consigo são parecidos, nas dificuldades e nas ambições, não deixa de contaminar todos os aspetos das nossas vidas. É também contra isso que se joga em campo. Tal como em 1998, a França multicultural e diversa, de diferentes origens, línguas e credos, segue debaixo da bandeira azul, branca e vermelha, para afirmar a sua união. Um novo título de campeões, seguramente, não lhes ficará mal.

19/12

Um Mundial como ele deve ser vivido

A Argentina de Messi é campeã do Mundo, cumprindo com o seu destino, num jogo onde voltámos a ter um vislumbre do futuro. O momento para fazer o balanço daquilo que vivemos neste mês de futebol, de todos os prismas que ele deve ser visto.

Messi cumpriu o seu destino. Filho predileto de uma nação que tem Maradona como um deus e o futebol como o território onde se desenvolve cultural e sociologicamente, Messi liderou um conjunto de guerreiros rumo ao título. Um título que, pelo que se viu nas bancadas e nas ruas da Argentina, pertence ao povo de um país marcado pela crise e incerteza quanto ao futuro. Uma conquista emocional num jogo que superou todas as expetativas. A melhor final de sempre.

O jogo pertenceu à Argentina durante 75 minutos. Mas que não foi entregue sem que Kylian Mbappé desse mostras da sua capacidade para liderar uma revolução. A França só nesses minutos finais mostrou a sua melhor face. O prolongamento demonstrou que as duas equipas queriam ganhar. Aí ofereceram os momentos mais loucos que poderíamos viver. A incerteza até ao último lance, com os golos, as oportunidades e as grandes defesas a acontecerem dos dois lados do campo. A França não reconquistou o título. Mas mostrou que o futuro continuará a ser dos génios.

É também por isso que o futebol venceu neste ano de 2022. Num Mundial cheio de razões para ser uma marca negativa na história do jogo e daquilo que o rodeia, a competitividade dos jogos, o equilíbrio entre os concorrentes, os jogadores e os seus feitos ofereceram-nos um Mundial que nos faz acreditar na força deste desporto e na sua capacidade para nos inspirar. A força desta modalidade volta a ficar bem patente no jogo da despedida. O poder de construir memórias, servindo de exemplo para o presente, uma força da qual não se pode desistir.

Ao mesmo tempo, a FIFA deu neste Mundial mais uma prova da sua falência. Na incapacidade de ver para lá do interesse financeiro na escolha do país organizador. Falhando totalmente no acompanhamento da construção das estruturas para o Mundial, nos direitos das pessoas envolvidas e de quem desejou acompanhar a prova. O Catar falhou no cumprimento de um caderno de encargos que vai bem para lá do bem parecer. As ditaduras, é certo, alcançam feitos que a razão não pode ignorar. E depois de em 2018 a história destes falhanços ter ficado por contar, 2022 foi o momento de ficarmos a saber do lado mais triste da história do Mundial.

Não me vou esquecer de Messi, de Mbappé, dos grandes jogos que este Mundial nos ofereceu. Não me vou esquecer do custos, em vidas humanas, em condições de abuso climático, em situações de direitos humanos, deste Mundial. Não me vou esquecer do esforço que fomos obrigados a fazer para perceber que o mundo vai bem para lá do nosso ponto de observação. E não me vou esquecer de voltar várias vezes a estes assuntos. Porque a FIFA tem que ser observada de perto. Porque o Catar e os seus interesses têm que ser investigados. Porque o legado deste Mundial também é aquilo que não devemos deixar de fazer.

Neste outro Mundial que fomos vivendo, diariamente, no AbrilAbril, estão muitas das coisas que senti e sinto importantes, essenciais, para cumprir com a minha função profissional, para me enquadrar naquilo que sou e quero ser como pessoa. O entender o fenómeno que me apaixona a partir das muitas linhas de pensamento que ele gera. O questionar-me, sempre, perante as coisas que surgem aos meus olhos. O aprofundar, a par e passo, dos temas que se fazem presente. Para todos os que viveram estes dias comigo o meu obrigado.

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