Ensaio sobre um balanço de 2022

Do ato confessional do balanço, reconhecendo os esforços feitos para ultrapassar os problemas que me afetaram, ao entendimento das metas profissionais alcançadas e renovadas com um ciclo que não se fecha por aqui. Assim foi 2022 para mim.

Fazer balanços é um exercício confessional. Será daí que nascem as dificuldades e contradições de quem se lança ao desafio de olhar para trás. Um exercício que se prepara ao longo dos dias, refletindo sobre o peso que as coisas têm nas coisas que fazemos. Um trabalho que se baseia na análise do trabalho que se realiza e, dessa forma, evolui dentro de uma linha que vai sendo desenhada no processo. É bom fazer planos para que os possamos quebrar. Mas 2022 conseguiu ultrapassar toda e qualquer coisa que pudesse ter sido planeada. Depois do vivido no ano anterior, não acreditaria na capacidade redentora que este ano me ofereceu. Nem talvez na força que encontrei para o realizar.

Este foi o ano em que a ideia de guerra voltou a povoar o imaginário europeu, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Foi o ano em que a polarização do discurso político se transcendeu, desde a invasão ao Capitólio em Washington até à campanha eleitoral no Brasil. Foi o ano de uma maioria absoluta que nem esperou pelo final do ano para se esboroar as bases sólidas que acreditou ter. Mas não há conflito que não seja pessoal. É essa a equação com que o ser humano se está continuamente a defrontar. E por muitos choques que o mundo nos exponha, é o seu reflexo em nós que tem o peso que melhor sabemos ler. Ou mais somos forçados a sentir. Daí que este tenha sido um ano de dor e recuperação. Um ano de pressão mental e capacidade de responder. Um ano de abertura à totalidade das coisas que me interessam e de tentativa de formação de ideias que todas reunam. Um ano de imenso trabalho que reforça a sensação de se ser capaz de continuar a desenhar, em processo, a linha que venho trazendo comigo.

Saúde mental e espaço público

No espaço público, todas as armadilhas são mentais. A maneira como somos levados a analisar sob a forma de opiniões coloca, sobre nós, o peso das nossas decisões. Para mais, vivemos num entorno onde não alcançámos ainda a destreza e a claridade que nos permita ter uma discussão sem desconfiar das intenções de quem connosco se senta à mesa. Mas é possível fazer-se caminho. Possível na maneira como os dados que analisamos podem falar mais alto do que as tentativas de desconstrução alheias. Se há mundo que devemos combater é aquele que se continua a desenvolver na formação de pequenas bolhas. Pequenas bolhas que se retroalimentam de ódio e de incompreensão. Onde as certezas se cristalizam na pressa do não-saber ou do não-querer-saber.

É particularmente exigente manter a sanidade mental num espaço onde os ataques surgem de todo o lado, onde a bruma parece esconder as bases que sentes como necessárias para desenvolveres a confiança nos teus gestos. Daí que esse peso mental que vamos tendo que transportar ao longo do caminho se pode facilmente transformar em algo que não suportamos. A capacidade de perceber como as bolhas se formam e desfazem, a necessidade de entender um pouco mais longe do expresso nas opiniões que nos magoam, o esforço para combater uma certa desistência que se instala por toda a parte é também uma parte – a parte mais importante? – do trabalho que temos a fazer. Certo de que não estou em condições de me queixar da vida que tenho. Compreendendo que a dificuldade faz parte do preço a pagar.

Comunicação, efeito global

2022 foi um ano de resgate. Não num regresso a alguma coisa, mas no recuperar de um espaço que estava em processo de se realizar. Primeiro, na forma como a proximidade com a guerra me obrigou a definir determinadas reflexões. Depois, na maneira como fui obrigado a lidar com problemas de dor crónica que me colocaram perante a necessidade de uma reformulação da minha forma de existir. Finalmente, no jeito como a vivência desses fatores e o stress mental por eles causado me transtornou, sei-o hoje, na minha atuação. O facto de, na maior parte do tempo, isso ter sido imperceptível para quem comigo trabalha só me levou, no fim, a preocupar-me mais com o que se passava comigo. Se há coisa que creio ter aprendido este ano é que, mesmo naquilo que não se vê, há sempre uma questão que temos de ser capazes de nos perguntar.

Para que o ano de resgate se completasse, a realização do Mundial no final do ano e a forma como, profissionalmente, me enquadrei nele, ofereceu-me um campo de expressão para o qual me sinto ter preparado, mas que só existe mesmo quando se materializa. A conjugação do conhecimento do jogo e dos jogadores, com o entendimento daquilo que em cada momento acontece perante os nossos olhos, a isso somando a quantidade de dados que hoje podem ser retirados dos acontecimentos que seguimos e a presença do elemento humano em toda a sua expressão – política, cultural, social – é, sem dúvida alguma, a posição onde me exijo colocar para fazer o meu trabalho. É nessa soma de vectores que faz sentido existir, não esquecendo nunca que o meu trabalho é o de comunicar com quem vê/escuta. E nessa linha de comunicação deve existir capacidade para se respirar, entendendo aquilo que digo, respondendo na forma como me exigem mais.

Para continuar

Fecho o ano de 2022 a perceber que nos faltam, ainda, os nomes para as questões que agora somos capazes de nos colocar. Nunca fui bom com isso de fechar conceitos, sempre me parecendo que há ainda mais uma pergunta que vai ficando por conter na maneira como tantos pretendem laçar a realidade. Mas aceito que, sem caminhar para certezas ocas (delas fujo!), podemos começar a encontrar uma linguagem que nos una na forma como nos entendemos perante as coisas. O Jon McKenzie, num muito feliz artigo sobre a maneira como se analisa taticamente o jogo de futebol, fala de um novo materialismo para o qual se poderia caminhar. Curiosamente, cita um conjunto de coisas que sinto ter andado a fazer ao longo dos anos, umas vezes de forma mais consciente, outras de maneira mais combativa, um pouco instintiva, talvez.

O que é certo é que apesar destes dias serem de balanço, não há aqui ciclo algum que se fecha. Bem pelo contrário. A capacidade de entender o mundo num esforço constante para o apreender e aprender, a resposta oferecida às dificuldades que me foram aparecendo pelo caminho, quer físicas, quer mentais, a forma como os desafios profissionais têm encontrado resposta da minha parte, consciente das dificuldades, mas leve para as ultrapassar e teorizar, são tudo sinais que me fazem estar muito confiante naquilo que ainda tenho por fazer daqui para a frente. Ao longo da vida, fui largando uma mania de colocar prazos naquilo a que me entregava. Isso pode agora ficar para trás. Para o que aí vem apenas olho nos olhos, sorridente, seguro de que há no futuro algo para perceber melhor do que percebo hoje. E é exatamente isso o que mais me anima a continuar.

Links úteis

Blogue ModoMudança – Artigos escritos no primeiro semestre do ano.

Um Outro Mundial – Acompanhamento diário do Mundial 2022 no AbrilAbril.

Entrevista ao site SetentaeQuatro sobre o Mundial 2022.

A New Materialism: Rethinking the Metaphysics of Football Tactics – Artigo de Jon McKenzie.

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