Os dados não mataram a estrelinha no futebol [Artigos do Expresso]

[Recuperação de um arquivo desaparecido, com a publicação de artigos que, ao longo do tempo, foi escrevendo para o Expresso. Este foi escrito em maio de 2019.]

Num mercado ainda muito marcado pelo conservadorismo e tradição, a entrada da análise de dados tem servido para revolucionar o pensamento de quem encarava o futebol como um jogo avesso à ciência. Os dados não chegaram para matar a estrelinha no futebol, mas quem quer estar na vanguarda do jogo já não dispensa a presença da estatística.

O futebol é cada vez mais um jogo de números. Uma dimensão que, é certo, sempre lhe foi próxima. Da contagem das superioridades à contagem dos golos, o futebol poderá ser o desporto onde o “mais um ou menos um” é mais fundamental, tendo em conta a possibilidade de um só golo decidir campeonatos inteiros. O crescimento da dimensão analítica do jogo multiplica as possibilidades de o vivenciar. Aliado ao potenciamento do negócio, a análise estatística do futebol quebra barreiras e marca a diferença entre campeonatos já no presente. Falamos do futuro, mas de um futuro que está vivo e nos entra pela porta do estádio a cada momento.

Ler a autobiografia de Johan Cruyff é entender o caminho entre a paixão pelo jogo e a vontade de absorver todas as suas dimensões. Escreve o antigo jogador e treinador holandês que, “em campo, eu olhava para todas as opções, mas apenas do meu ponto-de-vista. Interessava-me o processo. Se eu fosse capaz de analisar o próximo passo, teria a capacidade de tornar esse passo bem sucedido”. Movido por diferentes experiências e contactos na Holanda, Espanha e Estados Unidos, Cruyff construiu uma filosofia para o jogo que ainda hoje marca pontos em grandes clubes europeus. É exatamente por isso que, hoje, milhares de pessoas que não estão em campo, nem pela linha lateral como treinadores, acabam por ser peças essenciais nas estrutura de clubes de futebol. Analistas que potenciam o conhecimento do jogo e transformam os mais pequenos pormenores em grandes vantagem competitivas. Porque na realidade do ganhar ou perder, são as pequenas coisas que fazem toda a diferença.

O inexorável rumo da mudança

Ted Knutson é CEO da StatsBomb, uma das empresas de referência, a nível mundial, quando se fala de estatística no futebol. A sua empresa trabalha dados de jogo a partir dos quais constrói análises que permitem o aprofundamento do conhecimento sobre os jogadores, informação preciosa para estabelecer a diferença no momento de encarar uma aquisição no mercado de transferências. As suas ferramentas também são utilizadas para a análise de adversários e da própria equipa, sendo que Knutson destaca o facto de “já termos trabalhado no futebol, permite-nos entender muito bem aquilo que uma equipa precisa de saber”. Com passagens prévias, na função de analista, no Midtjylland, da Dinamarca, e no Brentford, de Inglaterra, criou a sua própria empresa no início de 2016.

É uma linha constante na forma como a estatística entrou no mundo do futebol. A aliança entre tecnologia, o conhecimento científico e a paixão e a experiência pelo jogo permitiram modificar comportamentos que se notam, à vista desarmada, na forma como abordamos as apostas desportivas, os jogos de computador ou o entendimento daquilo que se passa no campo. Uma questão de vanguarda que levou a ProEleven, agência de jogadores com sede em Portugal, a assumir também a análise estatística como um dos serviços que presta aos seus clientes. Óscar Botelho, analista da empresa, refere que o facto de trabalhar com equipas em mais de vinte países diferentes e, nas equipas de mais alto nível, esta análise ser considerada como um dado adquirido no processo de conhecimento dos atletas, que impôs essa diferença.

“Sentimos isso a trabalhar com equipas da Premier League ou da MLS (campeonato que reúne equipas da América do Norte). Não temos que lhes explicar os gráficos, eles já têm acesso aos dados e conhecimento dos mesmos”. A vanguarda do jogo discute cada resultado ao mais ínfimo pormenor. Ted Knutson trabalha com vários clubes da duas principais divisões inglesas e analisa o mercado de forma concreta. “O futebol em Inglaterra tornou-se muito inteligente, no que toca à utilização dos dados, nas temporadas mais recentes. Em França, trabalhamos com o Paris SG e toda a Ligue 1 está a aderir rapidamente a este tipo de análises. Na Alemanha, sentimos que cada equipa tem desenvolvido projetos próprios, com resultados interessantes. O mesmo se passa em países como a Dinamarca ou os Estados Unidos”.

Hernâni Ribeiro, analista da Goalpoint, empresa portuguesa que fornece serviços de análise e consultadoria com base estatística afina pelo mesmo diapasão. “Não é só o dinheiro a fazer a diferença em Inglaterra, é a forma como o conhecimento do jogo tem sido aprofundado”. A nacionalidade e a experiência da maioria dos donos de clubes da Premier League ajudam a compreender a transformação. Oriundos da América do Norte e de diferentes países asiáticos, homens de múltiplos negócios e variadas experiências, entenderam sempre o investimento nos clubes de futebol como um combate ao subjetivismo. “Falar de um bom remate é subjetivo”, confia-nos Hernâni Ribeiro, “adicionar dados torna as coisas diferentes. Quem gere, quer este tipo de factos”. A ideia é confirmada por Óscar Botelho. A introdução da estatística confere “credibilidade”, através de dados que são considerados “incontestáveis”.

“É uma mudança lenta, mas decidida”. Ted Knutson caracteriza desta forma a mudança que se vai operando na indústria do futebol. Um recente relatório da KPMG confirma esta mesma ideia, denunciado que as decisões baseadas na análise de dados são cada vez mais a regra quando toca ao mercado de transferências. A sustentabilidade de um negócio de muitos milhões, mas onde a consciência de que o dinheiro não é eterno, é garantida pela melhoria da forma como se tomam as decisões. Para Knutson, “uma boa parte dos agentes ainda se sente desconfortável neste novo mundo”, mas para Óscar Botelho, “o contacto com a realidade dos grandes clubes” levou por uma opção de mudança. Duas razões saltam, várias vezes, no seu discurso, como argumentos fortes para a mesma. Com este tipo de dados, “o não é dificultado, ajuda a fundamentar a proposta e leva a uma maior análise do jogador”. Hernâni Ribeiro resume tudo com “trazer os dados para cima da mesa evita os erros que podiam acontecer em relatórios baseados apenas na observação, que podiam conter erros ao ser influenciados pelo gosto do observador”.

Os números perante o elogio e o pensamento crítico

Parte da gestão de informação permitida pela análise dos dados passa pela definição de modelos de jogador, num contexto onde “todos os jogadores são bons para um determinado nível”, como afirma Óscar Botelho. Trabalha-se numa dimensão de imensas variáveis e onde a demarcação de diferenças competitivas se mede ao pormenor. Para Ted Knutson, esta informação tem permitido o avanço de uma realidade onde a aquisição se baseava bastante num quadro de conselheiros (entre agentes e observadores), para um quadro de pormenor que beneficia os clubes e que, cada vez mais, “evita erros de investimento que tendiam a ser clamorosos”.

No quadro de uma empresa como a ProEleven, trabalha-se com os jogadores agenciados, mas também com jogadores de outros parceiros, com atletas que estão na lista de dispensas de clubes e também com a preparação de informação para os treinadores agenciados. Isto gera um quadro alargado de necessidades que obriga a uma forte organização de recursos humanos. Óscar Botelho define a organização da empresa, com “coordenadores responsáveis por cada mercado, que têm um profundo conhecimento da Liga local, dos clubes e das pessoas com quem estão a negociar”, procurando que a resposta seja o mais fiel às necessidades do negócio. Preparam relatórios que partem dos dados de jogadores do respetivo plantel ou Liga, comparando-os com os dados de jogadores apontados como exemplos pelo cliente para chegar ao nome proposto. O tipo de análise que poderá permitir, por exemplo, o encontrar de um novo Éder Militão, para mencionar um jogador que está de saída da Liga portuguesa.

Existem posições em campo que saíram muito beneficiadas pelo advento da análise estatística. O espetador médio de um jogo de futebol concentra-se naquilo que cada atleta faz, com bola, na criação de oportunidades de golo. Para Hernâni Ribeiro, tradicionalmente, “os olheiros estavam também formatados para aquilo que cada atleta faz com bola”. Daí que o lugar de médio-defensivo seja aquele que, na sua opinião, mais terá saído beneficiado da revolução proporcionada pelo entendimento dos benefícios da estatística. N’Golo Kanté, atualmente no Chelsea, é o melhor exemplo. Formado em clubes de escalões secundários franceses, passou, em anos consecutivos, da 3ª Divisão Francesa, para o título de campeão da Premier League com o Leicester. A base do seu recrutamento foi a análise estatística, tendo em conta que logo na 2ª Divisão, com o Caen, a “sua performance na recuperação de bola por comparação com outros jogadores da mesma posição era absurda”.

Esses dados levaram à sua entrada no radar dos analistas ingleses e a forma como impactou no surpreendente campeão da Premier League em 2015/16 fez o resto. É neste recente intervalo de tempo que os quadros de valores de transferências se vão alterando, com fortes investimentos em guarda-redes e defesas, algo que parecia estar apenas permitido a goleadores e criadores de oportunidades ofensivas. “No caso dos guarda-redes, estão a aparecer novos métodos de análise, como as Expected Saves, que permitem uma grande assertividade nas qualidades do atleta entre os postes”. Uma medida semelhante, os Expected Goals, vem permitindo uma maior clarificação do valor das equipas e dos jogadores no que toca à finalização. Esta medida permite avaliar a qualidade de cada remate realizado à baliza durante um encontro, comparando-o com a taxa de sucesso dos remates nas mesmas condições em cada uma das Ligas. Uma vez mais, oferecer uma visão concreta a algo que só podia ser avaliado de forma subjetiva.

No outro extremo, Hernâni Ribeiro continua a aconselhar bastante cuidado na forma como se usam os números na análise dos defesas-centrais. “É a posição para a qual se deve olhar de forma menos quantitativa. A quantidade das ações não é uma boa medida para os centrais, visto que a questão do posicionamento dos jogadores ainda não tem dados suficientes. Logo, um central que realize muitos desarmes pode acabar por ser um jogador que está muitas vezes fora da melhor posição”. Por isso, a Goalpoint não dispensa ferramentas de observação de vídeo para a definição dos seus relatórios. Ao mesmo tempo, o departamento de inovação do FC Barcelona tem vindo a realizar estudos aprofundados sobre esta questão, com Javier Fernández a liderar uma equipa que apresentou recentemente interessantes resultados na definição de novas medidas de análise de posicionamento dos jogadores.

As limitações dos dados estatísticos que estão, hoje, disponíveis no mercado é reconhecida pelo analista da Goalpoint. Mas é na criatividade com que esses dados são utilizados que se vai desenvolvendo novas formas de interpretar os eventos de um jogo de futebol. Na questão comportamental, por exemplo, “sabemos o motivo de cada cartão amarelo e vermelho, o que nos permite transferir aquilo que é o jogador dentro de campo para a sua atitude fora do campo, identificando eventuais problemas num determinado jogador”. Como o define Ted Knutson, “é um processo iterativo, não se trata de encarar esta nova onda de informação como uma revelação. Trata-se de encontrar uma falha e analisá-la a fundo. Depois vamos refinando o nosso conhecimento sempre a partir daquilo que não funciona”. A estatística não tende a dar novas respostas. Mas acaba por permitir que as perguntas sejam bastante mais focadas do que eram anteriormente.

O velho observador, o novo analista e as conquistas do futebol

A introdução dos dados estatísticos no dia-a-dia de um clube de futebol não se tratou, propriamente, de uma substituição de recursos humanos, mas, acima de tudo, de uma afinação do conhecimento e tecnologia disponível no seio de cada estrutura. Todos os três entrevistados são unânimes na forma como a análise de dados não substitui o trabalho do observador, antes utiliza o seu conhecimento, facilita-lhe o trabalho de seleção e identificação e incorpora ferramentas que tendem a tornar mais certeira a proposta final. Neste caso, a ideia de um futuro distópico onde a máquina e o número substitui a presença humana está longe de ser uma questão. Óscar Botelho foi treinador adjunto no Santa Clara e observador no União da Madeira, Belenenses e na equipa nacional de Cabo Verde, entre outras equipas, antes de assumir a posição que atualmente ocupa. “Na ProEleven a observação é sempre necessária. Seja antes, durante ou depois, está sempre presente no processo, não sendo substituída pelos números. A estatística é um chamariz, um sinal de credibilização da observação, mas a análise técnica é fundamental”.

Por outro lado, o analista nota que “não temos capacidade para observar todas as ligas do mundo”, pelo que recorrer aos dados estatísticos acaba por permitir chegar mais longe no que toca a identificação. “Na maioria dos casos, os números chamam-nos a atenção para o facto de existir um jogador numa determinada Liga cujos dados apontam para a possibilidade de jogar a um nível mais elevado”. Nesses casos, a análise técnica de um observador, ora através do vídeo, ora através da observação direta, permite complementar o nosso relatório. “Também já tivemos casos de jogadores que tinham bons números, mas cuja análise não confirmou potencial. Ainda assim, ao trabalharmos com muitas realidades diferentes, temos necessidade de ter jogadores para dar resposta a níveis competitivos que representam diferentes realidades”. Para Óscar Botelho, 1% de acerto na definição dos alvos a apresentar a clubes e treinadores pode acabar por ser um número de sucesso. Daí a importância dada a uma estrutura de análise que recorre ao máximo de ferramentas possível.

Ted Knutson não espera que treinadores com experiência de dezenas de anos no terreno se transformem para passar a entender o jogo desta forma que é proposta pela análise de dados. Mas entende que, no futuro, “a ideia de um treinador-analista, que está confortável com a utilização da estatística para analisar a sua equipa, o rival e as transferências, será bastante comum”. Por isso mesmo, entende fazer parte do seu trabalho a educação de uma nova geração que é bem mais sensível a este conhecimento. Uma geração que, como define Hernâni Ribeiro, está mais do que familiarizada da relação dos números com o jogo. “Passou bastante pelas apostas desportivas, onde a estatística é fundamental, e hoje em dia quase toda a gente já utilizou jogos de computador onde os dados são muito importantes para alcançar o sucesso”. São estes os treinadores que vão saindo de faculdades e de cursos, mas também é esta a realidade de muitos dos jogadores profissionais dos nossos dias. “Digo sempre que não vamos substituir nada, nem ninguém. Mas cada vez mais temos dirigentes que querem saber mais. Temos também jogadores que, semanalmente, nos procuram para saber como ficaram as suas estatísticas. São eles que serão os treinadores no futuro”.

Com forte implantação no mercado português, sendo pública a parceria com o Sporting Clube de Braga, para quem a Goalpoint prepara “o reporting estatístico e análise, pré e pós-jogo, tanto da equipa sénior do SC Braga como dos seus adversários, até à avaliação e scouting de alvos de mercados de acordo com as características definidas pelo clube”, Hernâni Ribeiro salienta uma resistência natural, sobretudo entre os eventuais clientes que tentam contactar para alargar o negócio. Ao mesmo tempo, Óscar Botelho salienta que o mercado português funciona a duas velocidades, “com uma realidade das equipas mais ricas e a realidade de todas as outras” a ter, entre si, um verdadeiro fosso. Daí que entenda a liga portuguesa como um território mais fértil para “jovens jogadores que pretendam dar o salto ou para jogadores que procurem relançar a sua carreira, depois de um ano menos bom”.

Isso leva a que empresas como a Goalpoint trabalhem também na área da comunicação, através de um site próprio, das redes sociais e do estabelecimento de parcerias com órgãos de informação, tal como aconteceu recentemente com a revista especial sobre o título do Benfica, da Tribuna Expresso. Para Hernâni Ribeiro, “aquilo que fazemos em público sente-se como uma validação. Por exemplo, no onze que escolhemos no final da temporada, todo feito a partir do algoritmo próprio criado pela Goalpoint, as escolhas batem muito certo com aquela que é a opinião do especialistas”. No fundo, para lá de uma transformação da realidade nas equipas de futebol, cruzando com uma nova geração de entendimento do jogo, estas empresas e analistas acabam por funcionar como evangelizadores da utilização dos dados estatísticos. O homem da Goalpoint confirma-o, “ainda que sem intenção. Acreditamos numa maneira mais objetiva de ver o futebol em Portugal. Quisemos trazer para o debate coisas que não eram faladas. Há uma sintonia entre a nossa chegada ao mercado e o início de uma conversa mais fundamentada”.

Os dados não mataram a estrelinha no futebol. A bola que bate no poste, o craque que tem um dia mau, o adversário que se adapta de forma mais rápida a uma mudança no contexto do jogo continuarão a ter uma presença forte na definição do resultado final. Mas num ambiente cada vez mais exigente ao nível do negócio e do acerto no momento da decisão, a consulta e análise dos dados torna-se imperiosa. Um caminho que se vai fazendo já no presente, com a tendência para ser aprofundado a níveis, para nós, impensáveis, na forma como a acumulação de experiências e testes aos dados poderá permitir novas análises e sugerir novas propostas. Por agora, a estatística ainda permite dar uma pequena vantagem, de pormenor, a quem está mais avançado na sua análise e utilização. Mas, como Ted Knutson deixa no ar, a pergunta para a qual todos os analistas gostariam de ter resposta, é sobre “o que irá acontecer quando todos forem capazes de tomar a decisão mais inteligente?” A bola, essa, não para de rolar sobre o relvado.

Comentários

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.